Deputada leva 'vida invisível' de empregada doméstica à Assembleia de SP

Integrante do MTST, Ediane Maria foi eleita deputada estadual pelo PSOL com mais de 150 mil votos

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São Paulo

Entre as datas cravadas na memória de Ediane Maria do Nascimento está 3 de setembro de 2002. Nesse dia, perto de completar 19 anos, ela desembarcou na rodoviária do Tietê, em São Paulo, saída de Floresta, município de pouco mais de 30 mil habitantes no interior de Pernambuco.

Desde então, foi empregada doméstica, babá, cozinheira. Mais tarde, tornou-se coordenadora do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto).

Agora, aos 39 anos, a data que tomou os pensamentos de Ediane é 15 de março de 2023, quando foi empossada deputada estadual. Filiada ao PSOL, obteve a 20ª maior votação entre os candidatos do estado e a quinta maior se consideradas apenas as mulheres.

Ediane Maria (PSOL) na Assembleia Legislativa de São Paulo, onde assumiu uma cadeira para seu primeiro mandato - Rubens Cavallari/Folhapress

Ela é, em diversos sentidos, uma figura que escapa do padrão político paulista. Embora o número de mulheres na Alesp (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo) neste novo mandato seja um recorde, são apenas 25 cadeiras delas em um total de 94, o que representa 27%.

Além disso, são 19 os que se declaram negros, como Ediane, o equivalente a 20%.

Ela compõe ainda uma minoria de esquerda, que fará oposição ao governador Tarcísio de Freitas (Republicanos). A tendência é que não cheguem a 30 na Assembleia os contrários ao titular do Palácio dos Bandeirantes.

Ediane não parece receosa de atuar na contracorrente.

"Perguntam se eu não tenho medo de estar lá dentro [Alesp]. Cheguei em São Paulo aos 18 anos, e todos me falavam ‘não, não e não’. Consegui passar por tudo isso e agora será mais um desafio. E não estou sozinha, tenho ao meu lado mais de 175 mil pessoas que votaram em mim", afirmou em entrevista na Casa de Luta do MTST, no bairro de Santa Cecília. "Nossa função é tensionar."

Ediane é a número 7 dos 8 filhos de Raimunda, que foi empregada doméstica e babá, e José Merêncio, pedreiro e feirante.

Uma das filhas de uma patroa de Raimunda foi para São Paulo e precisava de alguém que cuidasse dos serviços de casa. Foi então que Ediane pegou o ônibus rumo à capital paulista e começou a trilhar o caminho da mãe.

"Em Floresta, eu era alguém. Aqui, virei mais uma no meio da multidão, essa era a minha agonia. O trabalho vai te tornando invisível", conta ela, que passou por algumas casas em que dormia no quarto de empregada.

Em 2016, Ediane estava na fila do programa Leve Leite no Jardim Aclimação, bairro de Santo André onde vive até hoje com os quatro filhos —ela é mãe solo.

Seu inconformismo com o tempo de espera e com a quantidade insuficiente de benefícios chamou a atenção de integrantes do MTST, que também aguardavam no local. Eles a convidaram para conhecer o movimento e a história de Ediane mudou de direção.

"A partir daí, eu comecei a olhar o mundo de um outro jeito e comecei a ganhar voz", diz.

Também se sentiu acolhida como nunca havia acontecido em sua vida paulistana. Os apelidos que recebeu são um sinal desse novo momento. "Olha o leãozinho!", diziam os amigos do MTST ao encontrar Ediane, que usa cabelo black power, com as pontas dos fios loiros.

Dentro do movimento, ela foi uma das fundadoras do Raízes da Liberdade, núcleo que discute pautas raciais e participa de manifestações com esse mote.

Em março de 2021, o grupo promoveu um protesto contra a alta de preços dos alimentos no Pão de Açúcar, em Moema. "Fomos lá para criticar a fome e o racismo, sem ofender os consumidores que estavam no supermercado."

Uma das principais propostas de Ediane está ligada diretamente ao seu dia a dia no MTST. Em meio à pandemia, o movimento lançou as cozinhas solidárias, que hoje distribuem refeições gratuitamente em 32 lugares do país.

Nesse seu primeiro mandato, a deputada pretende apresentar um projeto na Alesp que transforme essa iniciativa em política pública, privilegiando as periferias das cidades.

A miséria nas ruas de São Paulo está entre os problemas que a deixam indignada. "Vejam o que aconteceu aqui na Prefeitura de São Paulo. Estão arrancando as barracas do povo em situação de vulnerabilidade", afirma, veemente, citando a responsabilidade do prefeito Ricardo Nunes (MDB).

Ediane apoia a muito provável candidatura de Guilherme Boulos (também do PSOL) para a administração da capital paulistana. Nunes deve ser um dos outros nomes fortes na disputa.

Procurada pela Folha, a Secretaria das Subprefeituras informa "que todas as ações da gestão municipal são pautadas na lei 59.246, de 28 de fevereiro de 2020, que dispõe sobre os procedimentos e o tratamento à população em situação de rua durante a realização de ações de zeladoria urbana".

De acordo com a pasta, "poderão ser recolhidos objetos que caracterizem estabelecimento permanente no local público, principalmente quando impedir a livre circulação de pedestres e veículos, tais como camas, sofás, colchões e barracas montadas ou outros bens duráveis que não se caracterizem como de uso pessoal".

Diz ainda que esses bens são guardados pela subprefeitura e podem ser retirados por seus proprietários, que são avisados da apreensão.

Na cultura, a nova deputada quer lutar pela instalação de mais bibliotecas nos bairros periféricos. "Por que as pessoas têm que pegar duas ou três conduções para ter acesso à cultura?"

Em relação à moradia, ela pretende levar as reivindicações dos movimentos sociais à Alesp, entre elas, pedidos de regularização fundiária e de transformações de ocupações em moradias populares.

"Vivemos num estado muito populoso, que é também o mais rico da América Latina. Mas não existe uma política de moradia do estado de São Paulo", ela critica.

Segundo a Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação do governo Tarcísio, São Paulo tem feito nas últimas décadas "investimentos orçamentários expressivos na construção de moradias populares, garantindo acesso às famílias de menor renda com concessão de subsídios, com atendimento habitacional médio de 20 mil famílias por ano na última década".

Também afirma que "nos problemas estruturais e complexos, tem atuado na requalificação urbana dos assentamentos urbanos precários, caracterizados por situações de risco, favelas, cortiços, loteamentos irregulares, problemas de acesso à infraestrutura e condições inadequadas de salubridade".

Ediane sabe que sua passagem pela Alesp será cheia de percalços. Por outro lado, ela está ciente de que o avanço de mulheres e negros nos espaços de poder é uma via sem volta. "Teremos enfrentamentos, mas não vamos retroceder, não adianta."


Raio-X | Ediane Maria do Nascimento, 39

Nasceu em Floresta, no interior do Pernambuco. Mudou-se para São Paulo aos 18 anos. Na capital paulista, foi empregada doméstica, babá e cozinheira. Em 2017, iniciou a militância ao fazer parte da ocupação Povo Sem Medo, em São Bernardo do Campo. Depois tornou-se coordenadora do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto) e do movimento negro Raiz da Liberdade. Foi eleita deputada estadual pelo PSOL por São Paulo, em 2022.

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