Guerra antifeminista e antitrans marca bolsonarismo dentro e fora do governo

Ações contra igualdade de gênero conectam direita do Brasil com conservadores de outros países

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Quem não se lembra do primeiro dia de Damares Alves (Republicanos-DF) como ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos? Naquele 2 de janeiro de 2019, ela viralizou ao anunciar na cerimônia de posse: "Atenção! Atenção! É uma nova era no Brasil: menino veste azul e menina veste rosa".

A frase gerou polêmica, mas Damares não recuou. No dia seguinte, dobrou a aposta na metáfora: "Vamos respeitar a identidade biológica das crianças. E digo mais, podemos chamar menina de princesa e menino de príncipe no Brasil que não há nenhuma confusão nisso".

Era um sinal claro de que o governo de Jair Bolsonaro (PL) lançaria uma guerra contra bandeiras dos movimentos feministas e LGBTQIA+, como a igualdade de gênero, o casamento homossexual, a descriminalização do aborto e o reconhecimento de direitos de pessoas trans.

Jair Bolsonaro, com faixa presidencial, ao lado de Damares Alves
Damares Alves ao lado de Jair Bolsonaro, no dia em que ele tomou posse como presidente - Isac Nóbrega- 1º.jan.19/Presidência do Brasil/AFP

A derrota eleitoral em 2022 parece não ter mudado os planos de bolsonaristas nessa agenda por vezes definida como "pauta comportamental".

Basta ver a enxurrada de projetos de lei antitrans país afora, ou o discurso em que o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) ironiza mulheres transexuais, para perceber que o combate apenas mudou de lugar.

"Essa oposição às pautas feministas e de liberdades sexuais pode se manifestar nos governos estaduais e municipais, nas Câmaras de Vereadores, nas Assembleias Legislativas, na arena religiosa", afirma Flávia Biroli, professora de ciência política da UnB (Universidade de Brasília).

A diferença, segundo Biroli, é que essa foi uma agenda oficial do governo Bolsonaro, com a eliminação de algumas políticas públicas e o corte orçamentário de outras.

Iniciativas como essas são a face visível de transformações mais profundas que Biroli examina no artigo "Reações à igualdade de gênero e ocupação do Estado no governo Bolsonaro (2019-2022)", cuja versão prévia foi apresentada no 46º encontro da Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais).

No trabalho, feito em parceria com Luciana Tatagiba (Unicamp) e Débora Françolin Quintela (UnB), Biroli analisa o perfil de todas as pessoas que ocuparam cargos de primeiro e segundo escalão em três ministérios: o da Educação, o da Saúde e o da Mulher, Família e Direitos Humanos.

Ela percebeu que o governo Bolsonaro reduziu a pluralidade dentro do Estado, negando a validade de perspectivas feministas, LGBTQIA+ e antirracistas, por exemplo.

É uma novidade porque, desde a Constituição de 1988, o Estado vinha se alimentando de diferentes pontos de vista da sociedade civil, com a incorporação de demandas contraditórias no processo de produção de políticas públicas.

Segundo a pesquisa, a coalizão bolsonarista, povoada por conservadores religiosos, exerceu um inédito poder de veto sobre políticas igualitárias, com o bloqueio de pautas sobre aborto, violência contra a mulher e educação para a igualdade de gênero e a diversidade sexual, entre outras.

No lugar dessa agenda, o governo Bolsonaro impôs uma visão de mundo em que só existem homens e mulheres, ambos heterossexuais, e onde há controle sobre a autonomia reprodutiva das mulheres.

E essa não foi a única estratégia do ex-presidente para enfrentar o que bolsonaristas chamam de "ideologia de gênero".

Num artigo também apresentado na Anpocs, a socióloga Marília Moschkovich mostra que o ministério de Damares Alves eliminou de sua atuação a perspectiva de gênero –que assume maior diversidade— para trabalhar apenas com ideias como "mulher" e "família".

Segundo a análise de Moschkovich, que é professora do Departamento de Sociologia da USP, a erradicação chegou às redes sociais oficiais de Damares, como o Twitter e o YouTube.

No texto "Senso-comum como política de Estado: ‘mulher’ e ‘família’ na política pública antigênero e a nova gramática dos direitos humanos no governo de Jair Bolsonaro", a socióloga examina mais de 6.000 tuítes da então ministra.

Moschkovich descobre que apenas 6 deles continham a palavra "gênero". Ainda assim, em 2 casos, o uso se deu em outro sentido, como em gênero educacional; nos outros 4, foi para incluir na expressão "ideologia de gênero".

Para a socióloga, essa estratégia permite a bolsonaristas esvaziar um conceito ao qual eles se opõem; se adotassem uma contestação explícita, poderiam gerar mais atenção sobre a perspectiva de gênero.

Além disso, de acordo com ela, o bolsonarismo procura associar o suposto enfraquecimento de laços familiares a problemas sociais, de modo que a família tradicional possa aparecer como solução.

Moschkovich diz à Folha que isso cria uma dificuldade de contestação: "Setores de oposição a Bolsonaro não podem se dizer contra as mulheres, contra a família. Até porque a família é uma das reivindicações mais claras do movimento LGBT: o direito de casar, de adotar filhos etc.".

Ao mesmo tempo, diz ela, isso mobiliza até quem não é bolsonarista raiz. "Pessoas que não compram o discurso todo, mas sim a parte de proteger mulheres e proteger famílias."

Para a socióloga, a situação não muda só porque Bolsonaro perdeu a eleição. Ou, pelo menos, vai demorar para mudar.

"Os retrocessos que o bolsonarismo causou vão ficar por muito tempo. Os próprios debates do movimento feminista são como os de 10, 12 anos atrás. Até escolas particulares alternativas pararam de falar em gênero por cobrança de pais. Teve perseguição de professores", afirma Moschkovich.

Do ponto de vista da direita conservadora, uma vitória e tanto numa batalha que não começou em 2018 e nem se restringe ao Brasil. Ela remonta aos anos 1990, quando o Vaticano passou a usar a expressão "ideologia de gênero" num contexto de disputas sobre direitos reprodutivos e sexuais (aborto e casamento homossexual, por exemplo).

A socióloga Jacqueline Moraes Teixeira conta essa história no artigo "A mulher e a família: agendas pentecostais na disputa pela gramática dos direitos humanos", em coautoria com Olívia Alves Barbosa (USP).

No texto, Teixeira mostra como Bolsonaro se insere nesse debate a partir de 2011, num percurso que envolve a defesa da "família natural" (pai, mãe e filhos), o Escola Sem Partido, o ataque ao kit contra homofobia –apelidado de "kit gay"— e a fake news da mamadeira de piroca.

Às vezes essa pauta é definida por analistas como cortina de fumaça para problemas reais, mas Teixeira, que é professora do Departamento de Sociologia da UnB, não vê dessa forma.

"Essa é uma disputa pela agenda dos direitos humanos", diz Teixeira à Folha. "Existe uma conexão com uma direita internacional que disputa os fóruns de direitos humanos. E estou falando especificamente da ONU [Organização das Nações Unidas]."

Por exemplo, quando se fala de uma menina de 10 anos que foi estuprada pelo tio, Damares e Bolsonaro rejeitam o aborto, embora seja autorizado por lei, e consideram que o combate à pedofilia é a verdadeira pauta de direitos humanos nesse caso.

Para Teixeira, que é pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), essas articulações não vão desaparecer com a derrota eleitoral. "O bolsonarismo é muito maior do que Bolsonaro", diz ela.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.