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Mariliz Pereira Jorge

Todo Carnaval tem fim, o que nunca acabou foi junho de 2013

Nunca foram os 20 centavos; ainda que tudo fosse diferente, tudo seria exatamente igual

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Mariliz Pereira Jorge

Gostava de imaginar que o futuro chegaria ao Brasil. Aquela promessa feita em 1941 pelo austríaco Stefan Zweig, inspirado pelas ideias de Gilberto Freyre, Roberto Simonsen e Sérgio Buarque. Seríamos uma potência mundial, segundo o livro "Brasil, o País do Futuro", no qual Zweig apostava em alguns ativos que pareciam sólidos: ausência de conflitos em nossas fronteiras, problemas internos fáceis de conciliar, riquezas naturais, um povo multicolor, unidade linguística e territorial. Não tinha como não dar certo.

Podemos olhar para todas as nossas mazelas, que são em maior número do que nossos ativos, e ter clareza de que o Brasil não tem a menor chance de dar certo. Ou podemos brincar de futurismo otimista, culpar as manifestações de junho de 2013 e imaginar que o futuro teria chegado se não fosse por 20 centavos.

Manifestantes comemoram a redução da tarifa de ônibus durante manifestação, na Avenida Paulista, em São Paulo
Manifestantes comemoram a redução da tarifa de ônibus durante manifestação na avenida Paulista, em São Paulo - Marcelo Justo - 19.jun.13/Folhapress

Dilma teria, como de fato aconteceu, terminado o mandato com a popularidade baixa. Talvez não tivesse havido black blocs, o grito por reformas, a revolta contra a corrupção e o despertar da extrema direita, mas acreditar em milagre na economia já seria otimismo demais.

O Brasil estaria em recessão, mas ainda com entusiasmo de quem sediaria uma Copa do Mundo e uma Olimpíada. Talvez Zweig estivesse finalmente certo. Quase foi no Plano Real. Com Lula 1 o futuro estava quase no presente. Quem sabe agora.

A Copa é nossa, com brasileiro não há quem possa. Jamais saberíamos o que é depressão coletiva ou álbum de meme do 7 a 1. Marina Silva seria a primeira mulher negra, nortista e ativista ambiental eleita presidente. O país, enfim, o grande protagonista da agenda ambiental mundial, celeiro das maiores startups ecológicas, casa de big techs com selo verde.

Nunca foram os 20 centavos. Ainda que tudo fosse diferente, tudo seria exatamente igual.

Se não fosse junho de 2013, talvez acontecesse no ano seguinte ou no outro. Nosso futuro está fadado ao fracasso porque nossos ativos são frágeis diante do nosso poder de destruição como sociedade. Não houvesse junho de 2013, mesmo que Dilma não tivesse sofrido um impeachment, os grandes partidos como PT e PSDB já se mostravam sem fôlego e a crise política alimentava a narrativa ilusória de renovação, além de nutrir a gestação de uma direita reacionária.

Mas, sem o impeachment, sem as poucas reformas, sem o remédio amargo chamado Michel Temer, o Brasil seria hoje a Argentina.

Nunca foram os 20 centavos, nunca foi sobre corrupção, tampouco sobre mais transparência na política ou um Estado mais eficiente. É sobre um futuro que jamais chegará. Não fosse Jair Bolsonaro, seria qualquer outro filhote da ditadura que flerta descaradamente com autoritarismo e truculência, enquanto diz amém.

É sobre a desigualdade que alimenta um país para poucos, enquanto outros poucos observam a partir do Planalto Central muitos outros que apenas sobrevivem enquanto políticos se preocupam com "farinha pouca, meu pirão primeiro" e em produzir meme para viralizar.

O que Zweig diria hoje ao ver o único futuro possível para o Brasil? Não é culpa de junho de 2013 que somos um povo multicolor que não aceita a nossa própria miscigenação e que perpetua exatamente o racismo que nos impede de crescer como potência econômica e de nos estabelecer como democracia. Será que Zweig veria algum futuro num país que derruba suas florestas e deixa seus povos originários morrerem à míngua?

Estamos no topo da lista de quem mais mata pessoas LGBTQIA+, despontamos no ranking de violência contra mulher, de estupros de vulneráveis. E sem junho de 2013 os números seriam ainda mais trágicos.

De lá pra cá estamos menos passivos, tomamos gosto pelo embate, trocamos o futebol pela política, cortamos relações com familiares, passamos a ser intolerantes com a intolerância. Sem junho de 2013 estaríamos presos àquele passado da ilusão do brasileiro cordial. O futuro não chegou, mas nosso presente é a cara do nosso passado.

Zweig e sua mulher foram encontrados mortos na casa em que moravam, em Petrópolis, logo depois do Carnaval de 1942. A razão do suicídio seria uma mistura de desolação pessoal com descrença na humanidade. Todo Carnaval tem seu fim, o que nunca acabou foi junho de 2013.

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