Leci Brandão sobrevive à política com voz firme, orgulho comunista e 'palavras mágicas'

Segunda deputada negra da Assembleia de SP, cantora diz que não adianta eleger 'preto que faz bobagem'

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São Paulo

Leci Brandão aprendeu a falar "todes", mas não fala o nome de Jair Bolsonaro. Vinda do universo do samba, a deputada estadual pelo PC do B em São Paulo tenta sobreviver à dureza da política, há quatro mandatos, com uma combinação de abertura ao diálogo e firmeza de convicções.

É esse o retrato que salta de conversas com ela e com colegas de Assembleia Legislativa. A parlamentar foi a segunda mulher negra eleita para a Casa, em 2010, depois de um vácuo de quase 30 anos. A pioneira foi a advogada Theodosina Ribeiro, que exerceu a função de 1971 a 1983.

A deputada estadual Leci Brandão (PC do B-SP) na entrada de seu gabinete, batizado por ela de Quilombo da Diversidade - Marlene Bergamo/Folhapress

O "todes", termo da linguagem neutra defendida por ativistas LGBTQIA+, entrou para o vocabulário a partir da convivência com quem também foge ao padrão daquele espaço, caso da ex-parlamentar Erica Malunguinho (PSOL), negra e primeira transexual eleita para a Casa, em 2018.

"Elas mesmas diziam para mim durante as campanhas: 'Você é a nossa referência, hein?'. E graças a Deus entrou um bando de gente", diz Leci à Folha durante entrevista em seu gabinete, batizado de Quilombo da Diversidade. Mais mulheres, negros e LGBTs vêm sendo eleitos para o Legislativo paulista.

É por historicamente defender grupos marginalizados que a deputada de 79 anos se recusa a pronunciar o nome do ex-presidente. "Acho que atrai coisa ruim, não faz bem para mim." Para ela, o político do PL lidera um projeto contrário à liberdade e aos direitos das mulheres e "do pessoal da quebrada".

A carioca Leci repete que sempre teve lado, como mostram os sambas com temática social que cantou e compôs em cinco décadas. Apoiadora de Lula (PT) "desde quando ele tinha cabelo preto", ela se empenhou em 2022 na campanha do presidente e na própria candidatura, vitoriosa com 90.496 votos.

Gosta também de dizer que Bolsonaro fazia um favor ao chamar adversários de comunistas, já que ela é uma integrante orgulhosa do Partido Comunista do Brasil, legenda à qual se filiou para concorrer pela primeira vez, em 2010, e de onde jamais pensou em sair.

"Eu acho ótimo que ele não goste dos comunistas. Para mim, é uma coisa positiva."

Tratando-se de alguém que se gaba de ter lado (o da esquerda), faz parte desde sempre da oposição na Assembleia e escancara sua ojeriza a Bolsonaro, desperta curiosidade a forma como Leci é vista por políticos do campo rival.

Ela tem uma relação cordial, por exemplo, com o atual presidente da Casa, André do Prado (PL), aliado do governador bolsonarista Tarcísio de Freitas (Republicanos).

Para a deputada, a convivência pacífica é resultado da postura civilizada que procura ter mesmo com adversários. Leci avalia que a atual legislatura está mais pacífica, bem diferente da anterior, marcada por falas preconceituosas, xingamentos e agressões entre opositores no plenário.

"Nunca usei a tribuna para ofender quem quer que seja e sempre consegui resolver minhas coisas e encaminhar meus projetos. Eu parto deste princípio: defendo os meus, o meu povo; não fico unicamente ofendendo [os outros]", explica. "Nós todos estamos aqui porque o povo nos colocou."

Nova série da Folha

  • Negros na Política

    A série "Negros na Política" estreia neste final de semana e seguirá ao longo de novembro, mês da Consciência Negra. A série vai perfilar alguns dos mais conhecidos e importantes negros com atuação na política nacional, como Leci Brandão e Abdias do Nascimento.

A mãe, dona Lecy de Assumpção Brandão, que morreu em 2019 aos 96 anos, ensinava a tratar todo mundo com respeito para ser respeitada, lembra a filha.

"A maior parte dessa sabedoria foi minha mãe que me deu, em seis palavras: bom dia, boa tarde, boa noite, com licença, por favor e muito obrigado", ela declama, emocionada com as recordações da mãe, que foi servente de escolas públicas no Rio de Janeiro e chegou a morar em uma delas com a filha.

Leci "é a melhor vizinha de porta que poderia existir", afirma a deputada Maria Lúcia Amary (PSDB), que tem o gabinete colado ao da comunista. A tucana, na Casa desde 2003, criou afeição e proximidade com ela apesar das divergências políticas e das posições diferentes em tantas votações.

"Ela tem uma história tão linda que a ideologia nunca foi motivo de qualquer constrangimento entre nós", diz Maria Lúcia, descrevendo a amiga como conciliadora e dona de atitudes democráticas.

As duas serão homenageadas em março com o Colar de Honra ao Mérito Legislativo, maior honraria da Assembleia, pelo histórico de serviços prestados. O anúncio foi feito pelo presidente André do Prado, que ao tomar posse em março chamou Leci de "rainha", como relatou a Folha na época.

Única representante do PC do B na Casa, a deputada tem como bandeiras do mandato a promoção da igualdade racial, o respeito às tradições de matriz africana e a valorização da cultura popular.

São pautas que inspiram seus projetos e discursos. Leci defende cotas na política e concorda com a ideia de reservar cadeiras para negros e mulheres. "Mas tem que ser [eleita] uma pessoa preta que tenha compromisso com o seu povo. Não adianta ser preto e fazer bobagem, né?", ressalva.

A deputada, que segue o Ketu, uma vertente do candomblé, considera o mandato "uma missão que vem da ancestralidade". Sua militância em prol das religiões afro aparece nas ações e no corpo: usa branco às sextas-feiras e outras cores conforme as celebrações e orixás de cada dia.

"Depois da nossa chegada, as pessoas de religião de matriz africana entram aqui trajadas com roupas do candomblé, da umbanda. Entra atabaque aqui na Casa. E ninguém fala nada, não. Porque, quando querem cantar os louvores, eles [evangélicos] cantam, e a gente não se mete nisso, né?"

Leci sempre cantou o que quis, inclusive para falar de amor. Lésbica, ela abordou a temática homoafetiva nos anos 1970 e 1980 em músicas como "Assumindo" e "Ombro Amigo", mas mantinha certa discrição em casa por pensar na mãe, "uma mulher nascida em 1922, com outra cabeça".

"Eu nunca fui bandeirosa, aquela coisa de bandeira. Não precisei fazer nada disso", afirma ela, que acredita ter contribuído para a causa LGBTQIA+ por falar do tema de maneira respeitosa.

"Sempre provo o meu lado com minhas músicas", diz a autora de "Zé do Caroço".

"Meus amigos diziam: 'Você é a favor de tudo que esse pessoal detesta: você é preta, é pobre, é do samba, gosta de orixá'. Eu respondia: 'Eu sou assim, Deus me fez assim e agradeço por ser do jeito que eu sou'."


RAIO-X | Leci Brandão da Silva, 79

Nascida no Rio de Janeiro, já era uma sambista reconhecida quando entrou para a política, filiando-se ao PC do B em 2010 para concorrer a deputada estadual em São Paulo. Venceu quatro eleições desde então, sendo reeleita em 2022 com 90.496 votos. Na Assembleia Legislativa, é integrante de três comissões e dirige a Ouvidoria do Parlamento no biênio 2023/2024

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