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Nikolas Ferreira elege bichos-papões progressistas em defesa do papel evangélico

Com prefácio de Malafaia, livro do deputado ataca de Marx a feminismo e acirra guerra cultural

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São Paulo

No prefácio de "O Cristão e a Política - Descubra Como Vencer a Guerra Cultural", o pastor Silas Malafaia promove uma espécie de passagem de bastão ao autor.

"Eu envelheci e, por essa razão, muitos olham pra mim e pensam: ah, o pastor Silas é um homem de Deus, mas é coroa." Jovens, agora é com vocês. "Nikolas é um rapaz que mostra que há pessoas nesta geração que já descobriram qual é o jogo."

O discurso bebe na teologia da batalha espiritual, que pressupõe uma guerra em curso entre forças do bem e do mal —um binômio que movimentaria não só inimigos espirituais, mas realidades bem concretas da vida terrena. Como, digamos, uma eleição presidencial.

O deputado Nikolas Ferreira ao lado do ex-presidente Jair Bolsonaro, em ato antiaborto promovido em 2023 - Douglas Magno - 8.out.23/AFP

E Nikolas Ferreira (PL-MG), a quem o pastor veterano reconhece como um líder nato do exército conservador, já entendeu as regras desse jogo.

Deputado federal mais votado do país em 2022, o que o alçou à nata bolsonarista no Congresso, Nikolas volta-se contra feminismo, "ativismo LGBT", universidades e outros bichos-papões da direita cristã neste livro publicado pela Central Gospel Editora, de Malafaia.

Sobra também para Paulo Freire, Karl Marx, Antonio Gramsci e a Escola de Frankfurt, cada um com um capítulo para chamar de seu. Eles aqui se transformam nos quatro cavaleiros do Apocalipse progressista que paira sobre os ditos cidadãos de bem.

Deus os livre de algo assim, mas o homem tem que fazer sua parte. É essa a tônica do título, que já na partida sugere uma trama para "alijar o povo de Deus do processo político".

Lá se vão umas quatro décadas desde que os evangélicos afrouxaram o papo de que "crente não se mete política" para começar a virar a chavinha. Nikolas nasceria dez anos depois de Josué Sylvestre, um assessor do Senado que ia à Assembleia de Deus, lançar em 1986 "Irmão Vota em Irmão", livro que encoraja evangélicos a se posicionarem no xadrez político-partidário. A eleição de quadros da igreja se multiplicou nos anos seguintes.

Se o bom cristão não ocupar esse lugar, afinal, adivinha quem vai? O diabo não pode pedir usucapião dessa área fértil em decisões que ditam os rumos da sociedade. Nikolas lembra que, por tempo demais, crentes quiseram distância de coisas mundanas como TV e futebol —política então, nem pensar. "E o que o capeta fez? Tomou-as para si." Vai deixar?

É aqui que entra a biografia heroicizada do autor, descrito como o filho de um pastor de uma igreja pequena, vindo de uma família sem tradição política e que em 2020, aos 24 anos, tornou-se o segundo vereador mais votado em Belo Horizonte.

A primeira colocada, aliás, é uma adversária preferencial nesta guerra cultural: Duda Salabert (PDT-MG), transexual e hoje sua colega de Câmara.

São páginas superpovoadas de ideologia e salpicadas com algumas imprecisões históricas, como afirmar que Che Guevara assumiu o poder em Cuba —não que ele não tenha tido papel central na instalação dessa ditadura latino-americana, mas desconfio que Fidel Castro ficaria chateado com a perda do posto.

O parlamentar resgata em mais de uma ocasião os horrores da Alemanha nazista, e a Lei de Godwin que se exploda, para traçar um paralelo com causas progressistas.

Acontece quando ele investe contra a defesa do direito ao aborto por movimentos feministas. O incentivo à prática, em sua narrativa, compara-se em alguma medida ao genocídio de judeus em câmaras de gás.

Sua lógica: se testemunhassem de perto o que se passava dentro delas, talvez muitos nazistas não conseguissem levar aquele massacre adiante. O mesmo valeria para o aborto, que produziria efeitos nefastos sobre as mulheres, mas nem sempre claros para quem o defende, segundo o deputado.

Numa passagem particularmente malandra, Nikolas diz que, para falar de cristianismo, basta pegar a Bíblia, mas, se quiser falar de feminismo, precisa consultar as teóricas que embasam o pensamento. Aí pega frases soltas, como uma em que Simone de Beauvoir afirma que mulheres continuarão oprimidas enquanto perdurar o mito da maternidade.

Seria como selecionar a dedo passagens bíblicas, da falta de punição para o dono que surrasse um escravo que morresse dias depois (Êxodo) aos 42 meninos despedaçados por ursas após chamarem Eliseu de careca (Reis), para alegar que a teologia cristã é cruel por natureza. Um reducionismo que pode ser pop na era das redes sociais, mas que elimina uma realidade bem mais rica do que isso.

A psicanalista e colunista da Folha Vera Iaconelli escreveu um livraço para questionar a ideia de uma mulher subjugada à condição materna, como se abrir mão de outros quereres fosse um sacrifício inato ao gênero, mas, apresentado assim sem contexto, óbvio que a fala de Beauvoir é um espantalho para a fiel que por toda uma vida ouviu que ser mãe é um projeto de Deus.

Ao longo da obra, Nikolas mexe com mais temores internalizados nas igrejas, jogando uma sombra sobre o futuro da tradicional família brasileira caso o fiel continue passivo diante da política. A direita é o único caminho possível: ele chama o "comunista cristão" de "bola quadrada" e "judeu nazista", invibializando uma postura mais à esquerda do evangélico, e diz que Jesus jamais seria socialista, porque "ele multiplicou o pão, não o dividiu".

Até o slogan pacifista "faça amor, não faça guerra" é visto com desconfiança. Seria uma arma disfarçada de boas intenções para implantar uma sociedade sem valores morais desejáveis? O golpe do "amor livre" está aí, só cai quem quer.

Quando passou pela última Bienal do Livro, no Rio, para apresentar este lançamento, Nikolas ganhou aplausos, mas também muitos tomates. A hostilidade o levou a lamentar, nas redes sociais, um "ambiente completamente progressista" e sugerir que seu livro viria para preencher lacunas "seja na livraria, seja na escola, seja na universidade".

Malafaia usa um trecho da Bíblia para ungir a nova geração: "Lança o teu pão sobre as águas, porque, depois de muitos dias, o acharás". Encontrou uma fornada inteira em Nikolas Ferreira.

O Cristão e a Política - Descubra Como Vencer a Guerra Cultural

  • Preço R$ 36,40 (160 págs.); R$ 34,90 (ebook)
  • Autoria Nikolas Ferreira
  • Editora Central Gospel Editora
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