Descrição de chapéu Lava Jato, 10 anos

Imprensa poupou Lava Jato, mas expôs irregularidades ao final, dizem especialistas

Para estudiosos do tema, mídia reportou de forma desproporcional os trabalhos e as versões das autoridades

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São Paulo

A imprensa brasileira não adotou a criticidade esperada do jornalismo profissional na cobertura da Operação Lava Jato e reportou de forma desproporcional os trabalhos e as versões das autoridades policiais e judiciais do caso, segundo especialistas ouvidos pela Folha.

Parte deles, porém, diz que desde 2019 houve uma mudança nesse quadro, a partir da exposição de diálogos de procuradores e do então juiz Sergio Moro.

As mensagens foram obtidas pelo site The Intercept Brasil, que procurou a Folha em seguida e permitiu que o jornal tivesse acesso ao acervo e produzisse uma série de reportagens. Isso ocorreu após criteriosa pesquisa e avaliação de relevância jornalística.

A série de revelações dessas mensagens, conhecida como Vaza Jato, mostrou a proximidade entre juiz e procuradores e catalisou revisões de decisões no Judiciário.

Entrevista coletiva com autoridades da Lava Jato em Curitiba, em 2014 - Avener Prado - 14.nov.14/Folhapress

A imprensa, segundo esses especialistas, deveria ter evitado o discurso de que quase todas as situações abordadas na operação eram de corrupção, já que parte delas teria sido enquadrada como financiamento irregular de campanha ou conflito de interesse.

O fato de generalizar as condutas como corrupção levou a um descrédito na política em geral, segundo eles.

A Lava Jato completou dez anos no último domingo (17) e ainda suscita debates sobre as condutas de autoridades, instituições, empresas e veículos de imprensa no caso.

O professor da ECA-USP Eugênio Bucci afirma que, até a Vaza Jato, a imprensa teve uma cobertura pouco crítica e que esse é um aspecto que merece uma reflexão e pode gerar aprendizado. "Muitas vezes era como se a força-tarefa [da Lava Jato] não fosse ela mesma o Poder, não fosse ela mesma o Estado."

"O que vinha dela [Lava Jato] era muitas vezes recebido na rotina das redações como uma informação confiável, sem necessidade de checagem. Em geral, era como se a informação estivesse chegando para as redações de um correspondente, e não de uma autoridade que precisa ser vista com ceticismo", disse.

João Feres Júnior, professor de ciência política do Iesp-Uerj, afirma que a atuação da imprensa na Lava Jato sacrificou a pluralidade de opiniões. "Sem pluralidade não tem debate público sadio, sem pluralidade não tem política sadia, a política fica contaminada."

Para Feres Júnior, "a atuação foi péssima para a democracia brasileira e foi um dos elementos mais fortes que levou à eleição de Jair Bolsonaro". "Isso redunda em uma sequência de coisas que vai de tentativa de golpe, quatro anos de governo desastroso e a gestão da pandemia."

Os especialistas falam da imprensa de uma forma geral.

A Folha manteve uma postura crítica em relação à força-tarefa, como preconiza o Projeto Folha, além de ter produzido uma série de reportagens reveladoras com base nas mensagens obtidas pelo site The Intercept Brasil.

Como mostrou reportagem de balanço publicada em 2021, os repórteres do jornal expuseram as principais descobertas da Lava Jato, mas também revelaram erros e questionamentos na condução das operações, apresentando bastidores indecorosos e claras contradições e ouvindo especialistas que discordavam do modo como as apurações eram encaminhadas.

Segundo Marjorie Marona, professora de ciência política da UFMG, a Lava Jato marcou o ápice de um canal de comunicação entre imprensa e autoridades policiais e judiciais que teve início nas grandes operações da PF na década de 2000 e que antes era ocupado pelos políticos, em especial em casos de CPI.

"Essa é, de certa forma, uma novidade, em comparação com casos históricos de mobilização do tema da corrupção como arma política. Até antes da Lava Jato, a disputa política em torno do tema da corrupção extravasava para a mídia pela voz dos próprios políticos, mas com a Lava Jato ouviu-se quase que exclusivamente a voz dos agentes judiciais", afirma.

O professor de estudos internacionais e brasileiros na Universidade de Oklahoma Fábio de Sá e Silva diz que "a imprensa teve uma relação com a Lava Jato de muito pouca crítica".

"Você vê muito daquilo que a gente chama de jornalismo declaratório, a imprensa meramente reproduzindo as falas dos procuradores no período de 2014 a 2018."

De acordo com Silva, a partir de 2019 teve início uma alteração nesse cenário. "Começa a haver uma virada de chave quando você tem a ida do Moro para o governo Bolsonaro, que provoca uma primeira fissura, e depois a Vaza Jato."

Esse entendimento é compartilhado por Bucci. "Não se pode perder de vista que a principal abertura de olhar crítico para a Lava Jato, que foi a Vaza Jato, teve um papel fundamental de boa parte da grande imprensa", disse.

Já Feres Júnior diz que a abertura de parte dos veículos da imprensa à Vaza Jato foi importante, "mas não cancela a enorme falha jornalística de comprar as narrativas do Ministério Público, Moro e Judiciário, ao longo de um longo período da Lava Jato. O dano já estava feito".

Marjorie também releva o papel da imprensa na Vaza Jato. "Estamos falando de um outro momento em que a Lava Jato já está muito enfraquecida, justamente em função das opções políticas das suas lideranças. Você tem o Moro no Ministério da Justiça e o Bolsonaro eleito", afirma.

"Houve uma mudança no cenário que a imprensa teve sensibilidade de capturar muito rapidamente, mas não me parece que a cobertura da imprensa na Vaza Jato e na Spoofing [operação da PF] tenha catapultado as mudanças", completa.

Os especialistas falaram ainda do que chamam de generalização da corrupção. "A Lava Jato foi uma oportunidade perdida para que a gente tivesse uma compreensão plena da história da relação entre empresas, poder público e partidos, sabendo fazer as distinções", afirma Silva

Para Feres, a Lava Jato reduziu a política à questão da corrupção. "Essa é uma pedagogia política imoral. O problema maior foi desacreditar a política institucional e a democracia representativa como um todo."

Além dos casos em tramitação em Curitiba, a Lava Jato envolveu autoridades de outros estados, como Rio e São Paulo, e também denúncias apresentadas em Brasília diretamente no STF (Supremo Tribunal Federal) pela Procuradoria-Geral da República.

Em seus primeiros anos, a operação contava com amplo apoio popular, com índices de aprovação acima de 60% em pesquisas do Datafolha feitas de 2016 a 2019.

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