Capítulo 4
Como a sociedade e as instituições mudaram nesses 10 anos
Naief Haddad | Até aqui, falamos principalmente sobre aspectos políticos ligados a junho de 2013. Neste último capítulo, vamos abordar a relação de instituições, como a Polícia Militar de São Paulo e o Ministério Público, com as manifestações de uma década atrás. Essa parte final da série também apresenta alguns dados econômicos e sociais, que mostram que, de modo geral, o Brasil andou de lado nesses dez anos.
Cavalaria da PM ocupa rua da Consolação, em SP, em meio aos protestos de junho de 2013 - Eduardo Knapp - 13.jun.2013/Folhapress
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Polícia Militar de São Paulo
Avenidas da capital paulista se tornaram um campo de batalha na noite de 13 de junho de 2013 –e um dos lados ostentava nítida vantagem. Aquele momento tem sido lembrado pela violência desmedida dos policiais, que usavam bombas de gás e balas de borracha contra o público.
“O quarto dia de protestos contra a alta da tarifa de transporte em São Paulo foi marcado pela repressão violenta da Polícia Militar, que deixou feridos manifestantes, jornalistas –sete deles da Folha– e pessoas que não tinham qualquer relação com os atos”, publicou o jornal dez anos atrás.
De acordo com reportagem de Artur Rodrigues por conta dos dez anos das manifestações, “a violência da PM, avaliam os estudiosos, acabou incendiando os atos e contribuiu para reverter a elevação da tarifa de transporte menos de uma semana depois, além de deixar o establishment político nas cordas”.
Naquele momento, o que a gente percebeu? Quem estava decidindo quem podia estar na rua e quem não podia, quando podia, quando não podia. A margem de discricionariedade das polícias foi muito grande
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Em 7 de junho, policiais negociam com manifestantes a entrada do protesto na av. Paulista - Avener Prado/Folhapress
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Policiais da Força Tática enfrentam manifestantes no centro de SP no dia 11 de junho - Fabio Braga/Folhapress
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Também em 11 de junho, a Tropa de Choque enfrenta os manifestantes na av. Paulista - Juca Varella/Folhapress
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Na fatídica noite de 13 de junho, soldados disparam no centro de São Paulo - Avener Prado/Folhapress
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Também em 13 de junho, policial com a arma apontada na direção de manifestantes e jornalistas - Avener Prado/Folhapress
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Em 30 de junho, confronto entre policiais e manifestantes no cruzamento das avenidas Francisco Xavier e Maracanã, no Rio de Janeiro - Fabio Braga/Folhapress
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O caso Sérgio Silva
Em meio ao caos nas ruas de São Paulo naquele dia 13, a repórter da Folha Giuliana Vallone foi atingida no olho por uma bala de borracha, como lembramos no primeiro capítulo dessa série.
Na mesma noite, o fotojornalista Sérgio Silva sofreu o mesmo tipo de agressão, com uma consequência mais grave: perdeu a visão do olho esquerdo.
Silva entrou com uma ação contra o Estado, mas teve um recurso negado neste ano pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, sob alegação de que não existem provas de que ele tenha sido mesmo atingido por uma bala de borracha. "Meu sentimento é de revolta, indignação. Eu não admito ter que ouvir uma decisão dessa sabendo da origem da violência que sofri", afirma.
Em meados de junho de 2013, o então governador Geraldo Alckmin proibiu o uso de balas de borracha em protestos em São Paulo.
Nem a Polícia Militar nem a Secretaria de Segurança Pública nem o governo do Estado me procuraram. Nem quando eu estava no hospital
O fotógrafo Sérgio Silva, que ficou cego após ser atingido por bala de borracha durante os protestos de 2013 - Arquivo pessoal
Nós tivemos algum manifestante morto? Nenhum. Tivemos policial morto? Nenhum. Diferente do que acontece em outros países [...] Eu entendo como um saldo positivo, apesar dos danos que ocorreram para várias pessoas
[A PM] agiu [em 2013] para conter pessoas que cometeram atos de vandalismo e danos ao patrimônio público e privado
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Armas e munição química
De acordo com dados obtidos pela Folha via Lei de Acesso à Informação, os gastos da PM de São Paulo “com munição química passaram de R$ 15,5 milhões, em 2013, para R$ 26 milhões no ano seguinte, sem contar R$ 2,5 milhões em armas não letais”.
As despesas desse tipo permanecem altas, e gastos apenas com armas não letais alcançam R$ 20 milhões neste ano.
Angeli - 17.jun.2013
Veja trecho de documentário “Junho+10”, da TV Folha
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Ministério Público
Diferentemente da Polícia Militar, a Procuradoria teve seus dias de glória durante as Jornadas de Junho. Entre as pautas mais recorrentes de manifestações em São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Brasília e outras cidades, havia o pedido para que o Congresso Nacional rejeitasse a PEC-37, que tirava o poder de investigação das Promotorias, restringindo-os às polícias.
No dia 25 de junho, os deputados federais derrotaram a proposta pelo placar de 430 a 9. As ruas demonstravam sua força.
A nossa leitura da época era de um clima muito positivo para a aprovação da PEC [antes das manifestações]. Houve naquela época um crescimento significativo da bancada de policiais, ao mesmo tempo em que membros da magistratura e do Ministério Público não podiam mais concorrer. Bateu o desespero em muita gente [contrária à PEC]
Protesto contra a PEC-37 na praça da Sé, em São Paulo - Danilo Verpa - 21.jun.2013/Folhapress
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Impulso para a Lava Jato
Como escreveu o repórter Italo Nogueira, “a agenda positiva do Congresso se estendeu nos meses seguintes, com a aprovação das leis anticorrupção e sobre organizações criminosas. A primeira criou os marcos dos acordos de leniência e a segunda, da colaboração premiada, principais instrumentos da Operação Lava Jato, iniciada um ano depois”.
Como falamos no primeiro capítulo desta série, essas decisões foram tomadas pela presidente Dilma poucas semanas depois da eclosão dos protestos. Ela estava sob pressão para endurecer a legislação anticrime.
Essas leis foram essenciais para o desenrolar das investigações da Lava Jato, segundo Deltan Dallagnol (Podemos), ex-coordenador-chefe da força-tarefa no Paraná e deputado cassado.
O então procurador federal Deltan Dallagnol e o juiz Sergio Moro no fórum Mãos Limpas & Lava Jato, promovido pelo jornal O Estado de S. Paulo, em outubro de 2017 - Jorge Araújo - 24.out.2017/Folhapress
Não teria ocorrido a Lava Jato sem 2013 porque, como resposta aos protestos, houve uma modificação legislativa que permitiu a operação: o instituto da delação premiada, definido com maior clareza. Só que a Lava Jato, a rigor, não produziu mudança institucional duradoura. Ela produziu um enorme chacoalhão e depois degenerou o processo
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Breque
O Judiciário, o Legislativo e o Executivo decidiram, no entanto, brecar os avanços da Lava Jato, que havia se tornado a grande vitrine do Ministério Público.
Conforme reportagem da Folha, “o STF (Supremo Tribunal Federal), que no início da operação referendou boa parte dos atos de investigação de Curitiba, passou a impor derrotas aos procuradores. Vetou o uso da condução coercitiva, alterou o entendimento sobre prisão após condenação em segunda instância, e passou a rejeitar a atribuição de Moro nas ações penais”.
O Congresso, por sua vez, aprovou a lei de abuso de autoridade, em 2019. No mesmo ano, o pacote anticrime alterou as regras para a assinatura de acordos de colaboração.
O governo Bolsonaro também contribuiu para dar fim à operação, como escreveu Celso Rocha de Barros, colunista da Folha, em outubro do ano passado: “Finalmente, pergunte para os procuradores da Lava Jato que não viraram políticos quem matou a operação: foi Jair Bolsonaro. Os procuradores discordam bastante da tese de que Jair fez isso porque a corrupção acabou. Os principais aliados de Bolsonaro em 2022 são direitistas que foram denunciados junto com o PT, e hoje vivem uma era de ouro”.
Vale lembrar que Sergio Moro foi o primeiro ministro da Justiça de Bolsonaro. Para alguns analistas, essa foi uma das armas do governo para enterrar a operação de uma vez por todas.
Laerte - 10.jun.2019
Não podemos generalizar, mas em algumas situações houve uso deturpado desses instrumentos, em especial da colaboração premiada. A lei estabelecia que não podia condenar ninguém com base na delação. Mas se começou a decretar prisão preventiva, busca e apreensão e oferecimento de denúncias apenas com base na delação. O que é um erro. Foi uma interpretação abusiva da lei
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Evangélicos
Além de instituições como essas que citamos, junho de 2013 envolveu setores expressivos da sociedade, como os evangélicos. É a repórter Anna Virginia Balloussier quem lembra: “Era 5 de junho, duas semanas antes dos protestos mais volumosos que tomaram as ruas do país. Dezenas de milhares de fiéis se reuniram numa quarta à tarde, em frente ao Congresso, em ato orquestrado por um personagem fulcral para o enlace entre bolsonarismo e evangélicos”.
O nome a que a jornalista se refere é o pastor Silas Malafaia, à frente daquela mobilização que reuniu milhares de pessoas contra o projeto de lei 122, que criminalizava a homofobia.
Além de Malafaia, estavam no palco Jair Bolsonaro, então deputado federal, e outros parlamentares ligados ao universo evangélico, como Marco Feliciano e Magno Malta.
Pastor Silas Malafaia e outras lideranças evangélicas promovem manifestação contra projeto que criminalizava a homofobia, na Esplanada dos Ministérios - Sérgio Lima - 5.jun.2013/Folhapress
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Igreja e política
Idealizador da Marcha para Jesus, cuja primeira edição aconteceu em 1993, o apóstolo Estevam Hernandes afirma que "a igreja adquiriu maior consciência política" nesses dez anos. Para ele, junho de 2013 influenciou a eleição de Bolsonaro cinco anos depois. "Havia um clamor por mudanças, e tinha essa expectativa por um nome conservador."
De acordo com a antropóloga Jacqueline Moraes Teixeira, professora da UnB com pesquisas em religião, 2013 foi "um ano muito central e estratégico quando pensamos em como algumas pautas começaram a circular de maneira mais capilar no segmento [evangélico]".
Teve início nesta época a difusão de versões como a que dizia que as igrejas eram perseguidas pelo PT, partido então no poder.
Marcha contra o aborto no eixo monumental, em Brasília, que aconteceu um dia antes do ato liderado por Silas Malafaia - Sergio Lima - 4.jun.2013/Folhapress
Fui matéria do Jornal Nacional por meses seguidos. Fui capa da revista IstoÉ, entrevistado da Veja e da extinta Playboy. [Muitos] programas de TV [...] Sacudiram minha vida. Protestos com beijos gay dentro das igrejas. A igreja se levantou, e nesse dia [5 de junho de 2013] mostramos nossa força
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Índices da economia
Em meio aos debates sobre junho de 2013 e seus possíveis desdobramentos, uma das perguntas recorrentes é: o país melhorou do ponto de vista econômico e social desde então?
Dados da economia mostram que mudou muito pouco de lá para cá, o que certamente não é um bom sinal. A renda média do brasileiro, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), era de R$ 2.783 no trimestre que vai de fevereiro a abril de 2013; foi de R$ 2.946 no mesmo intervalo neste ano.
A taxa de desemprego do primeiro trimestre de uma década atrás era de 8,1%; o mesmo período neste ano registrou 8,8%.
Ao menos, a inflação está mais baixa considerando o IPCA acumulado de 12 meses em maio de cada ano. Alcançava 6,5% em 2013 e agora não chega a 4%.
Jean Galvão - 29.mar.2015
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Recortes sociais
Entre os dados socioeconômicos, há uma alteração positiva em relação à mortalidade infantil. Em 2013, foram 14,4 óbitos por 1.000 nascimentos; em 2021 (ano dos dados mais recentes), o país teve 11,2 óbitos.
Por outro lado, a fome aumentou. Segundo pesquisa global Gallup realizada desde 2006 em cerca de 160 países, a taxa de insegurança alimentar na população brasileira dobrou a partir de 2014. Nesse ano, atingiu 17% da população; em 2021 (ano dos dados mais recentes), alcançou 36%.
No IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), calculado pela PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), o Brasil anda de lado. O índice oscilou de 0,750 em 2013 para 0,754 em 2021.
Pertences de moradores de rua sob o Minhocão, em São Paulo; ao fundo, um grafite ironiza a relação entre o então presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, e o mandatário norte-americano Donald Trump - Lalo de Almeida - 23.jun.2019/Folhapress
É preciso aproveitar os dez anos de junho de 2013 para refletir sobre a força da sociedade organizada em favor dos direitos e da redução das desigualdades e não repetir o erro de acreditar que basta a presença nas instituições para tornar nosso país mais igualitário e solidário
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Passe livre
Em relação ao transporte público, um dos temas centrais de junho de 2013, a bandeira do passe livre “saiu do status de utópica e entrou no vocabulário de políticos de diversas matizes ideológicas”, escreve o repórter Artur Rodrigues.
“O transporte público gratuito, realidade em apenas dez cidades antes de junho de 2013, chegou a 74. Na esteira da corrida eleitoral do ano que vem, capitais também estudam adotar a medida.”
Manifestantes picham ônibus durante manifestação contra o aumento da tarifa do transporte, em São Paulo - Fabio Braga - 7.jun.2013/Folhapress
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Na espera
Havia nas manifestações de 2013 um barulho antipolítica, que impulsionou, de certa forma, a extrema direita nos anos seguintes. Mas também eram fortes os gritos por uma nova agenda social, que abarcava o transporte público, claro, e ainda educação e saúde.
Em artigo na Folha, Julio Lopes, pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa, escreve que o “legado político [da onda de protestos] foi destacar os serviços básicos de mobilidade urbana, cuidado da vida e formação humana como funções sociais da cidade —cujo destaque, desde antes de junho de 2013 em pesquisas de opinião, continua aguardando se tornarem agenda política de governos no Brasil”.
Nesse sentido, prevalece a frustração.
Manifestantes em frente ao Congresso Nacional, em Brasília, em 2013 - Roberto Jayme - 20.jun.2013/UOL
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Lições de junho de 2013
No documentário “Junho+10”, recém-lançado pela TV Folha, a socióloga e colunista da Folha Angela Alonso e o deputado federal Kim Kataguiri (União Brasil-SP) indicam as lições que junho de 2013 deixa para o Brasil de 2023.
“O perigo de sair à rua com uma insatisfação geral, sem pauta, é involuntariamente sair à rua contra a democracia. É preciso saber o que se quer e é preciso também que o pedido seja politicamente possível de ser atendido. Se não for assim, você está pedindo a troca de regime”, afirma Kataguiri.
Para Alonso, “toda vez que a esquerda se divide, a direita ganha. Essa lição não foi aprendida. A gente vê agora movimentos à esquerda pressionando o governo federal em diferentes frentes quando o governo tem que enfrentar um inimigo muito mais forte do outro lado”.
Veja documentário completo da TV Folha
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Junho de 2013 não deve ser esquecido, tampouco visto como um fenômeno que, sendo tão complexo, torna-se indecifrável. Aquela ebulição de insatisfações deixou lições, é hora de o país fazer o dever de casa.
Obrigado pela leitura.
Manifestantes passam por ponte estaiada sobre o rio Pinheiros em protesto em junho de 2013 - Lalo de Almeida - 17.jun.2013/Folhapress