Descrição de chapéu
Elisa Bracher

Sexualidade é assunto eterno, do humano, e acredito na potência da conversa aberta e afetiva

Elisa Bracher, uma das criadoras do Ateliescola Acaia, escreve sobre experiência pessoal de abuso

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Elisa Bracher

Artista plástica, é fundadora e diretora do Instituto Acaia, que atende em período integral crianças moradoras de favelas da zona oeste de São Paulo

Sou Elisa Bracher, artista plástica e educadora. Em 1997, fundei o Ateliê Acaia, que fazia um trabalho com crianças e jovens moradores das comunidades da Vila Leopoldina no contra-turno escolar. Hoje somos um instituto, e temos o Ateliescola Acaia, que atende 300 alunos, do infantil ao final do fundamental 2. Deles, 240 estudam em período integral, e 60 frequentam cursos pré-técnicos.

Por muitos anos não conseguia responder à questão que me colocavam: Por que você começou a fazer este trabalho?

Em 2022, motivada por uma forte emoção que senti ao ver a manchete do jornal sobre a morte, após estupro, de uma menina yanomami de 11 anos, gravei um depoimento sobre a minha experiência de menina abusada por três anos, dos 11 aos 14.

Elisa Bracher é uma mulher branca, de cabelos grisalhos, curtos e cacheados; ela usa um óculos redondo, de armação preta, veste uma camisa com listras pretas e brancas, e um casaco preto
Elisa Bracher, artista plástica e diretora do Ateliescola Acaia, participou da 6ª edição do seminário Violência Sexual Infantil, realizado pela Folha em parceria com o Instituto Liberta, no dia 18 de maio - Jardiel Carvalho/Folhapress

Criei o canal Infâncias Despedaçadas para tratar de abuso infantil. Neste momento, entendi que fiz e faço o que faço para que minha dor não doa nos outros.

Para pensar sobre assuntos relacionados à criança, temos que entender como é a criança. A criança nasce e, desde bebê, já tem um corpo erotizado.

A erotização é fluida, está espalhada pelo corpo todo; há desejo e prazer no contato físico, na pele que encosta na pele da mãe, do pai ou de quem quer que esteja cuidando do bebê. Ela tem também um enorme prazer ao mamar.

A genitalização da sexualidade só se dá depois da puberdade. O grande trauma do abuso infantil é a exposição da criança a algo, uma energia, um pulso, que ela ainda não está pronta para elaborar. A criança abusada no período anterior à genitalização só entenderá a crueldade, o crime pelo qual passou, depois da puberdade.

Escutar, acreditar e garantir

Crianças precisam estar acompanhadas e precisam de uma escuta atenta e acolhedora.

Ao ouvir uma criança abusada, a primeira coisa a se fazer é acreditar nela e assegurar que não aconteça de novo. Não devemos nunca culpá-la nem perguntar por que não nos contou antes. Não devemos questionar nada que diga respeito à criança. Temos que ter em mente que ela está sendo constrangida a fazer algo que não entende o que é.

Em minha experiência de abuso sexual —que até pouco tempo imaginei ser a primeira—, eu morava em uma casa grande e sofria de uma grande solidão. Assim, era uma presa fácil. Um funcionário da casa percebeu essa fragilidade e iniciou uma relação de abuso comigo que durou três anos.

O importante, aqui, é falar da complexa relação entre desejo, prazer, medo, dependência e culpa que habitaram meu corpo e meu coração durante esses anos.

Eu sabia que estava fazendo alguma coisa errada e sabia que estava sendo machucada. Não sabia em que lugar me feriam aqueles inúmeros encontros. Como não havia penetração —e, da minha parte, nem orgasmo—, eu sempre ficava com aquela forte sensação física de algo incompleto. Isso me levou ao hábito de me masturbar depois dos encontros ou sempre que não encontrava meu agressor.

Eu começava a ter desejo, então me colocava à disposição, ou era surpreendida por meu agressor e imediatamente começava a ficar molhada.

Sem que eu percebesse, essa relação foi criando um estado de solidão muito maior do que aquele em que eu vivia anteriormente. A partir desses encontros, passei a me sentir suja e indigna de estar com minha família. Apesar de suja, me sentia invisível também.

A criança e a escola: espontaneidade x cuidado

No Ateliescola Acaia, as crianças permanecem conosco dez horas diárias. É um tempo longo, que nos permite observá-las em profundidade e com calma.

No dia a dia, nos deparamos com a questão de ensinar a criança a lidar com o próprio corpo e com a questão da espontaneidade. Entre elas e com os adultos, as crianças brincam, se abraçam, andam de mãos dadas. O professor fica em uma posição delicada: tem de perceber quando é o caso de se aproximar e brincar junto ou quando já existe uma situação com gestos marcados pela erotização.

É normal que isso apareça. Faz parte das buscas naturais pela compreensão do corpo. Mas essas situações precisam ser tratadas de maneira diferente. O professor tem de ficar próximo e muito atento. As crianças normalmente sabem que estão procurando algo que ainda não conhecem em um campo expandido e se sentem seguras com a presença de um adulto protetor.

Um exemplo.

Carlos é uma criança de três anos que, desde que entrou na escola, faz uma pesquisa sensorial com elementos que se tocam. Faz muito isso no ateliê: mistura água com óleo e passa um tempo observando a bolha de óleo se deslocar pela água; pega tecidos e fica passando um no outro. Com as outras crianças, Carlos gosta de encostar ombro no ombro, de se sentar bem junto e encostar as pernas; na areia, gosta de se deitar em cima de outra criança.

A professora não percebe nada de erotizado e nenhuma criança reclama. Até que um dia uma menina fala: "Professora, não quero que o Carlos deite em cima de mim. Ele está muito pesado".

Aí, sim, a professora pode intervir e trabalhar com Carlos os limites de sua investigação. Isso foi aceito pelo menino com naturalidade, e ele pode continuar com sua pesquisa de pele com novos limites e em outros lugares, especialmente no ateliê. Se for o caso, o assunto é também tratado com toda a turma.

Começamos muito cedo a instruir as crianças sobre como lidar com o próprio corpo. Os professores falam no grupo. "Como você fala para seu amigo se não está gostando de alguma coisa? 'Eu não estou gostando desta brincadeira' ou 'não quero que você pegue em mim desta maneira'".

Essas questões são muito discutidas na escola. Em que momento a criança pode ou não por a mão ou abraçar o outro? As crianças vão falando coisas desse tipo umas com as outras; e também ouvem outras crianças falarem com a professora.

Esse tipo de atitude acaba por criar uma situação em que as crianças se sentem à vontade para falar sobre incômodos com seu corpo ou no contato com outros corpos.

Uma brincadeira de esconde-esconde com crianças muito pequenas, por exemplo. Quando uma criança encontra outra, é comum sair correndo e abraçá-la, porque ainda não tem domínio total do corpo ou pela alegria espontânea do brincar. A escola não pode esquecer a doçura do toque, do conhecimento; é preciso muito cuidado, ao se programar, para não se sobrepor ao desenvolvimento corporal natural de uma criança.

Outro exemplo.

Na sala, as crianças estão em uma roda de conversa. De repente um menino se levanta, põe o pênis para fora e começa a provocar as outras crianças.

É uma situação extrema. A professora chama o menino, faz contenção com cuidado. Para que ele não se assuste, avisa que vai segurá-lo. Pergunta primeiro para classe: "Vocês estão gostando de ver o pênis do Armando (nome fictício)? É legal Armando ficar andando aqui com o pênis para fora?".

Algumas crianças se intimidam, mas a maioria diz: "Não estamos gostando", "eu não quero ver o pinto do Armando".

Então a professora conversa sobre a situação em grupo e, depois, conversa em particular com Armando. Ela quer que Armando pense sobre o que está acontecendo. Não espera uma resposta, e sim abrir espaço para reflexão.

Diz a ele: "Você escolhe a quem você mostra seu pinto. Tem lugares que são íntimos, onde você pode pegar no seu pinto, ficar com ele para fora. Mas dentro da sua escola tem um combinado que aqui não é o lugar adequado".

Temos que ter muito cuidado com o limiar entre o que é natural, coisas que podem ser feitas, e o que não é. Se colocarmos as situações de afeto e de toques em um mesmo patamar, corremos o risco de limitar o espaço e o tempo que as crianças têm para o desenvolvimento das relações corpo-sexuais —que vão se revelar ao longo dos primeiros anos, e até a puberdade, quando a criança genitaliza.

Esse inicio da vida sexualizada é construído de exibições, toques e olhares que, quando bem encaminhados, levam a investigações saudáveis, que fazem parte do trabalho de conhecimento do próprio corpo e do outro.

O caso desse menino se estendeu, e a professora procurou ajuda de nosso psicólogo para entender como deveria encaminhar a situação. A família foi contatada e informamos que Armando seria atendido individualmente em um programa de oito encontros. Nessa situação estavam envolvidos o professor de sala, o auxiliar, o psicólogo e a orientadora, além da família.

É um caso que até hoje exige atenção, mas Armando já não precisa pôr o pinto para fora e aprendeu que quando fica nervoso, antes de atacar um amigo, deve procurar o professor, o orientador, a diretora, enfim, alguém que possa acolhê-lo por um momento até que possa voltar para sua atividade.

Foi preciso criar condições para que Armando pudesse falar do pinto, desenhar muitos pintos, buscar palavras para dizer o que estava sentindo e a que ele relacionava essa vontade, quando ela vinha. O pinto eufórico persiste e insiste. Assim, nossas perguntas e aproximações o ajudam a sair do concreto para o simbólico. São provocações que o levam a refletir. A abrir o assunto.

"Quando você sente vontade de mostrar o pinto, o que você pensa? Relacionado com o quê?"

Quando a professora procurou o psicólogo, primeiro fez um encontro só com ele; depois os dois, juntos, fizeram encontros com Armando. E assim foi até que Armando se sentisse à vontade, ou seja, criasse um vínculo com o psicólogo. Assim, os dois puderam começar o atendimento de oito sessões, sozinhos.

Além de exibir o pênis, Armando muitas vezes parte para cima de outras crianças e faz chantagens. Alguns dias, chega deprimido à escola. A professora já o conhece bem, já conversou com o psicólogo para lidar com suas angústias e dúvidas; já sabe que em muitos momentos Armando precisa de contenção, assim como em outros precisa de acolhimento.

Contenção acolhedora sempre. O próprio ato de contenção exige comunicação, para que não seja invasivo.

A professora anuncia para a criança: "Agora vou lhe segurar para que você não se machuque e não machuque ninguém. E vamos sentar juntos. Combinado?".

A história de Armando me ajuda a apresentar nosso trabalho de saúde mental no infantil do Ateliesacola Acaia.

Os psicólogos acompanham atividades de biblioteca, no pátio e em sala de aula e oferecem aos professores horários de discussão de situações de trabalho. Os professores, que lidam com as crianças a maior parte do tempo, têm à disposição educadores, coordenação, família, comunidade escolar e também atendimentos em rede quando necessário.

As formas de cuidado incluem a Oficina dos Sentimentos, atividade em que seis a oito crianças brincam acompanhadas por um psicólogo. Optar por ela, entre marcenaria, biblioteca, artes e música, já é uma forma de autocuidado.

Também temos atendimentos individuais ou em pequenos grupos, com duração fixa de oito sessões, para que não se caracterize uma terapia dentro da escola. Plantões em que se revezam psicólogo, assistente social, orientador e acompanhante terapêutico são outra forma de lidar com desequilíbrios emocionais na comunidade escolar.

Para os adolescentes, organizamos um programa que foi batizado pelas próprias crianças, o Crias – Construindo Reflexões sobre Infâncias, Adolescências e Saúde.

Saúde, e não sexualidade. Primeiro, pela dificuldade de propor um programa de sexualidade nos últimos tempos, mas também porque saúde abrange todo o processo de desenvolvimento humano, que engloba o sexual. O programa começa no segundo semestre do quinto ano e se estende até o nono ano, aproximando e depois aprofundando temas.

Um exemplo de uma turma do quinto ano. O professor explica que haverá dias em que os meninos vão acordar com a cama molhada e vão pensar que fizeram xixi na cama, mas que, se passarem a mão no líquido, verão que ele é mais espesso, e que não é urina, e sim sêmen.

Um menino está com a cabeça abaixada entre os braços. Alguém pergunta com que idade isso pode acontecer. O professor responde que a partir dos 11 anos.

O menino acabou de fazer 11 anos. Diz, com expressão de nojo: "Vixi, mas já? Ah, não, não pode ser".

Depois o professor pergunta se eles sabem o que é masturbação. Outro menino diz que é bater punheta. O primeiro garoto, que está revoltado, diz: "Ah, isso não! Não é possível!".

No sexto ano, utilizamos materiais de apoio que são muito próximos dos órgãos genitais, próteses das partes íntimas. Achamos importante não infantilizar as imagens e nem o vocabulário. Passamos a falar pênis, vulva, vagina.

Os pilares do Crias são: sexualidade, nutrição, corpo, relação saudável com substâncias psicoativas, saúde mental e emoções. Aqui, novamente, é o vínculo que permite que assuntos como esses possam ser tratados.

O que estamos dizendo é que a escola aborda as temáticas que as crianças desejam tratar. Isso é organizado temporalmente. No dia a dia, um sem-número de imprevistos, dentro e fora da escola, nos fazem avançar ou recuar.

Um exemplo explica muito bem isso. Uma aluna participa dos encontros do Crias. Em casa, à noite, se sente ameaçada por um cunhado.

Nesse momento, ela se lembra da discussão no grupo com os colegas e consegue se defender. Tranca-se no banheiro com o celular e telefona para a avó. A família procura a escola.

Para nossa surpresa, apesar de conviver com situações de abuso há muitos anos, a família foi mobilizada e quer tomar uma providência. Com nosso encaminhamento, buscaram ajuda na rede pública de saúde.

Enquanto escrevia este texto, já um pouco farta com o pinto insistente, fui dar uma volta pela escola.

Entrei em uma sala que normalmente é tranquila. Naquele momento, um grupo de crianças de 7 a 8 anos estavam sentadas numa mesa com a professora, o professor da biblioteca e a orientadora e conversavam sobre... pinto. A orientadora perguntava para cada menino: "Você quer saber mais sobre seu corpo? Você quer falar mais seu corpo? Por que você mexe no seu pinto?".

Algumas crianças respondiam que sim, outras que não. Vários diziam que começavam a mexer no pinto sem perceber e que, como era gostoso, continuavam.

Um dos meninos disse que tinha uma coceira insistente e revelou que nunca tinham ensinado a ele como lavar o pinto. O professor da biblioteca se encarregou da tarefa.

Os meninos contaram que, quando correm ou andam de bicicleta, o pinto fica gelado. O professor da biblioteca sugeriu que fizessem um cachecol para o pinto, o que gerou grande alegria nos meninos. Ao fim do encontro, vários admitiram que gostariam de conversar mais sobre o corpo e o pinto.

Então os educadores me explicaram o porquê daquela reunião. Os meninos estavam dando sarradas nos colegas da escola. Na minha ignorância, perguntei o que é sarrada. É parte do vocabulário do funk: o menino dá um salto e rala o pinto no outro, faz um movimento de fricção nas costas do outro, simulando uma transa. Assim, dizem, o pinto fica duro.

Esse tipo de convivência que tenho na escola muitas vezes me lembra de uma situação que vivi aos 7 ou 8 anos. Fui levada para ver um cavalo e uma égua copulando. Fiquei assustada com aqueles enormes corpos se digladiando de maneira selvagem. Lembro do momento em que a fêmea expulsou o macho de cima de sua anca.

A pessoa que estava comigo me disse, bastante excitada: "Olha, a vulva dela está úmida, olha os movimentos".

Ao lado, o macho resfolegava, com o enorme pinto para fora. Por muitos anos, carreguei essa cena dentro de mim. Tentava lidar com a violência e não entendia por que eu precisava ver aquilo.

Enquanto eu presenciava a cena, tentava me desvencilhar da mão adulta que me segurava, e esta insistia que eu precisava ver aquilo. Me fez ver aquilo até o momento em que o cavalo conseguiu cobrir a fêmea com seu enorme pinto duro. Hoje, sei que foi uma violência.

Trauma é aquilo que excede o que temos recurso para lidar. Assim, vimos uma criança de 4 anos chegar muito aflita para a coordenadora e dizer: "Eu vi saindo leite do pinto do meu irmão".

A diferença entre as línguas do adulto e da criança, uma no registro do leite, e a outra do sêmen, desorienta a criança. Sem ancoragem, ela recorre à escola para lidar com o excesso.

A sexualidade é um assunto eterno, do humano. Mas, à medida que uma escola cria um caminho seguro, que permite a crianças e educadores conversar livremente sobre a fluidez dos sentidos, tudo encontra um lugar melhor. Não esperamos que histórias deste tipo deixem de existir. Mas acreditamos na potência da conversa aberta e afetiva.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.