Inteligência artificial dá apoio em UTIs, prevê falta em consultas e alerta para pacientes graves

Tecnologia, porém, ainda tem testes e uso limitados a alguns hospitais e clínicas, em especial na rede privada; custo e dificuldades de implementação são desafios

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Brasília

Algoritmos usados para priorizar conteúdos de amigos em redes sociais, indicar séries e filmes ou a melhor rota de trânsito também podem, na saúde, ajudar a monitorar dados de pacientes internados em UTIs, prever a disponibilidade de leitos e remédios e dar alertas em exames de imagem sobre possíveis diagnósticos graves.

Nos últimos anos, projetos que envolvem inteligência artificial —tecnologia que busca imitar ou reproduzir a inteligência humana e nosso processo de aprendizagem— começaram a aparecer em alguns hospitais e clínicas do país, a maior parte ligados à rede privada e em grandes centros.

O uso, porém, ainda é limitado perto do potencial da área, segundo especialistas, que preveem uma transformação nos próximos anos.

Homem está em sala escura com luz azulada. Atrás dele, é possível ver uma radiografia.
Bruno Aragão, médico radiologista responsável pelo HepatIA, que pesquisa uso de um sistema de inteligência artificial para ajudar a identificar lesões e tumores no fígado no hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP - Zanone Fraissat - 14.jun.23/Folhapress

"Ainda estamos na pré-história da inteligência artificial na saúde", diz Alexandre Chiavegatto Filho, professor de inteligência artificial em saúde na Faculdade de Saúde Pública da USP.

Entre os impasses, estão custos, dificuldades de implementação, falta de integração de alguns sistemas de dados em saúde e carência de profissionais habilitados para trabalhar com esses modelos. Outro ponto é a necessidade de maior volume de testes em comparação a outras áreas.

O avanço dessas tecnologias, porém, já é visto como uma certeza. "A saúde vai ser, muito provavelmente, a área mais transformada pela inteligência artificial. Há potencial para uso de algoritmos em todos os momentos do contato do paciente com o sistema de saúde."

Dois motivos reforçam essa análise: o fato da área coletar e armazenar grande volume de dados e a necessidade de obter respostas para questões complexas. "Ninguém vai a óbito só porque se alimenta mal e é sedentário, é sempre uma interação complexa de fatores, o que faz com que algoritmos tenham potencial de transformar a saúde."


Dados da pesquisa TIC Saúde, realizada pelo Cetic.br, apontam que, em 2022, ao menos 3.567 estabelecimentos em saúde usavam IA —destes, 3.231 eram da rede privada. O total equivale a cerca de 3% de 120 mil estabelecimentos de saúde pesquisados.

Segundo representantes do setor, o uso é mais frequente em ferramentas de apoio à gestão, como em sistemas que buscam estimar o tempo de internação de pacientes e ajudam a prever a demanda de leitos, ou que têm foco em medicamentos e organização de filas na saúde.

Iniciativas de apoio ao diagnóstico, no entanto, também têm avançado nos últimos anos —especialmente na radiologia.

No Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, por exemplo, uma das primeiras experiências nesse sentido ocorreu na pandemia de Covid, quando a equipe de inteligência artificial criou, com apoio de empresas, algoritmo para identificar comprometimento pulmonar em tomografias de pacientes com a doença.

"Isso foi disponibilizado para dezenas de hospitais, o que ajudou a tratar e salvar muitos pacientes", diz o médico Giovani Cerri, presidente dos conselhos do Instituto de Radiologia e de Inovação do HC.

Atualmente, o hospital tem testes de inteligência artificial também para dar apoio no diagnóstico de outros quadros, como câncer de mama, nódulo de pulmão e fraturas.

Também desenvolve uma plataforma que usa algoritmos para triagem de lesões e tumores no fígado em exames de imagem. O objetivo é disponibilizar a ferramenta para reduzir o tempo de espera por resultados na rede pública.

"O sistema vai funcionar como uma triagem de casos positivos para que o laudo saia mais rápido. Hoje, no serviço público, isso pode demorar algumas semanas. Com o sistema, sairia em poucos dias", diz o radiologista Bruno Aragão, pesquisador responsável pelo projeto.

Desenvolvido desde 2018, o sistema está agora em etapa de validação de dados. "Esperamos que em um ou dois anos possa ser usado de forma mais ampla", diz Cerri.

Os exemplos vão além e atingem outras funções.

Na Rede D'Or, desde setembro, um sistema cruza variáveis como tempo de agendamento, deslocamento, horários e outros fatores para prever maior risco de falta em consultas e otimizar a agenda.

"Nossos índices de falta eram em torno de 25% a 30%. Usamos o histórico dos pacientes faltosos e criamos um modelo que conseguia dizer com 80% a chance de vir na consulta. Isso diminuiu em 33% o absenteísmo, porque atua para confirmar ou dar outra opção de data", afirma Daniel Ferraz, médico à frente da área de inteligência artificial.

A rede aposta agora em outras frentes. Em uma delas, foi criado um algoritmo de processamento de linguagem natural (um ramo da IA que foca na compreensão da linguagem humana) que faz a leitura de prontuário médico e laudos de exames para ajudar a identificar doenças como câncer de mama.

Em outra, um sistema analisa imagens do fundo do olho para ajudar na triagem de pacientes com problemas oculares e encaminhar o caso a especialistas. A proposta está em etapa de testes no hospital São Rafael, em Salvador.

Clínicas que já implementaram o uso da IA também relatam impactos. É o caso do Grupo Fleury, que usa desde o ano passado sistema capaz de detectar, em até 15 minutos, casos suspeitos de embolia pulmonar e hemorragias intracranianas na análise de tomografias.

Segundo Edgar Rizatti, presidente de unidades de negócios médico, técnico e de hospitais, a ferramenta não substitui a avaliação médica, mas ajuda a identificar casos graves e urgentes.

"Muitas vezes é um achado acidental e ocorre ainda no exame. A análise identifica um trombo nos grandes vasos do pulmão, o que pode levar a um desfecho desfavorável e ir a óbito", relata. "Com isso, o radiologista prioriza o caso para análise e contacta o médico do paciente para que medidas sejam tomadas rapidamente."

Em 2022, cerca de 24 mil exames foram analisados —deste total, ao menos 800 pacientes receberam encaminhamento após os alertas.

OMS alerta para risco de erros

Mas se por um lado o setor vê avanços no uso da inteligência artificial, especialistas também recomendam cautela na incorporação desse tipo de tecnologia na saúde.

"Precisamos ter cuidado em não aceitar cegamente tudo que é rotulado como inteligência artificial", afirma Chiavegatto, da USP, que defende que novas tecnologias de IA na saúde passem por estudos randomizados, assim como ocorre para medicamentos.

A preocupação vai ao encontro de alerta feito pela Organização Mundial da Saúde na esteira do lançamento do ChatGPT, robô que usa inteligência artificial para gerar respostas em poucos segundos.

"A adoção precipitada de sistemas não testados pode levar a erros por parte de profissionais de saúde, causar danos aos pacientes, minar a confiança na IA e atrasar os potenciais benefícios e usos de longo prazo de tais tecnologias", escreveu a entidade.

A posição é compartilhada por parte dos médicos que acompanham a área. Cerri, do HC, vê potencial de uso de modelos semelhantes ao ChatGPT como alternativa para contato com pacientes e facilitar pesquisas. Mas faz ressalvas.

"O ChatGPT pode dar informações corretas ou muito erradas. Ele não tem compromisso com a verdade, só em dar informações, que têm que ser filtradas."


Em 2021, outros aspectos já haviam sido alvo de alerta da OMS em relação à inteligência artificial, como privacidade dos dados de pacientes e o risco de erros e vieses por algoritmos, que podem acentuar desigualdades.

Problema semelhante foi identificado por pesquisadores da Unicamp que desenvolvem, desde 2014, um projeto com uso de algoritmos para diagnóstico de melanoma. Após ter atingido alta precisão na análise de fotografias em estudos iniciais, o grupo viu que o resultado não se repetia quando observadas possíveis lesões de pele na população negra. O motivo era o baixo número de imagens desse grupo no banco de dados, obtido principalmente de outros países.

"Modelos de IA aprendem a partir dos dados e baseado em padrões. Se não tem [dados da população negra], a tecnologia não vai nem ver esse padrão. E essa não é a representação que temos no Brasil", diz Sandra Ávila, professora do Instituto de Computação à frente do projeto.

Agora, o grupo faz novas pesquisas para corrigir o problema e, no futuro, poder disponibilizar a ferramenta ao SUS.

Para Félix Rigoli, consultor sênior do núcleo de estudos sobre bioética da Fiocruz Brasília, a inclusão de inteligência artificial no SUS pode ajudar a organizar filas e facilitar o atendimento onde há carência de profissionais.

"Mas isso tem que ser incorporado de acordo com os princípios do SUS, ou seja, é preciso seja igualitário e que não crie diferenças. O que não necessariamente está na mente de todos que inventam inteligência artificial."

Há ainda outros desafios. "O primeiro é informatizar. Temos hoje unidades públicas sem ou com muito pouca conectividade à internet", afirma. "Outra questão é aumentar a segurança do banco de dados, que já foi alvo de hackers."

Recentemente, representantes da área de saúde digital do Ministério da Saúde declararam que a pasta tem intenção de incluir inteligência artificial no SUS, mas sem prazo.

Um dos impasses seria a ausência de uma lei específica sobre o tema, o que abre margem para dúvidas em relação a questões como responsabilização em caso de erros.

Atualmente, softwares para diagnóstico médico com inteligência artificial são submetidos às regras de registro de dispositivos médicos na Anvisa. Não há um balanço específico sobre o tema.

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