Argentina cria precedente e decide veredito sobre Operação Condor
Daniel Garcia - 1º.jan.1982/AFP | ||
Foto de 1982 mostra ato das Mães da Praça de Maio, cujos filhos desapareceram na ditadura argentina |
Um dos últimos grandes julgamentos de abusos cometidos durante a ditadura militar argentina (1976-83) chega ao fim nesta sexta (27) com o veredito do caso Condor.
Devem receber sua sentença 18 ex-militares acusados de participar de ações conjuntas de repressão envolvendo troca de inteligência e de agentes entre Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai.
A Operação Condor foi uma aliança entre os governos militares de países da América do Sul, acertada numa reunião em novembro de 1975, em Santiago —com o Brasil passando a fazer parte do bloco logo depois. O símbolo escolhido para nomear o pacto foi o da imensa ave que sobrevoa a região andina do continente.
"Por um tempo, os EUA apoiaram essas operações, e é de lá que têm saído os principais documentos para investigá-las", disse à Folha o historiador americano John Dinges (autor de "Operação Condor", lançado no Brasil pela Companhia das Letras), que trabalha com arquivos desclassificados (sem sigilo) em Washington.
"Os países sul-americanos deveriam aportar mais dados que estão em poder de suas próprias Forças Armadas, antes que seja tarde demais."
Daniel Garcia - 30.mar.1982/AFP | ||
Foto de março de 1982 mostra homem sendo detido durante protesto contra ditadura argentina |
No julgamento que acaba agora, foram investigadas os desaparecimentos de 108 pessoas (argentinos, uruguaios, paraguaios, bolivianos e um peruano) na Argentina.
É o primeiro julgamento conjunto de casos relacionados à Operação Condor e o único a ultrapassar as fronteiras da Argentina —das 108 vítimas, 93 são estrangeiras.
CENTROS ESPECÍFICOS
Uma das coisas reveladas na investigação, segundo o promotor Pablo Ouviña, é que o Condor possuía centros clandestinos em Buenos Aires apenas para receber prisioneiros estrangeiros, como a oficina Automotores Orletti, usada para prender e torturar principalmente os prisioneiros uruguaios.
Iniciado em 2011, o atual processo fez uso de depoimentos de vítimas e testemunhas em distintos casos de desaparições, para evitar sobreposição de depoimentos.
Para driblar as leis de anistia que seguem em vigor em alguns países, como o Uruguai, fez-se o uso da figura do "delito permanente" [que considera que o crime que continua sendo cometido], pelo fato de os corpos das vítimas em questão jamais terem sido encontrados.
Por isso, casos célebres em que se conhece o paradeiro dos cadáveres não puderam ser incluídos. Entre eles, o do assassinato do general chileno Carlos Prats, em 1974. Membro do governo deposto de Salvador Allende, Prats foi morto em Buenos Aires.
1º.jan.1977 - AFP | ||
Foto de 1977 mostra Orlando Ramon Agosti (dir.), Jorge Rafael Videla e Emilio Massera (esq.) |
Também ficou de fora, pelo mesmo motivo, a execução do diplomata Orlando Letelier, outro aliado de Allende, vítima de uma bomba colocada no carro em que viajava, em Washington, em 1976.
Para montar a acusação, usou-se também documentação do Arquivo do Terror do Paraguai, documentos dos EUA sobre Chile e Argentina que já tiveram o sigilo removido, da Anistia Internacional, da Vicaría de la Solidariedad de Santiago e da Comissão da Verdade do Brasil.
"Creio que é um processo que abre precedente para que se julguem outros grupos de crimes parecidos durante as ditaduras latino-americanas. Apesar de concentrar-se nesse número limitado de casos, fizemos uso de recursos legais não usados antes e reunimos muita documentação", explica Ouviña.
A demora em chegar a uma sentença final deixou associações de direitos humanos angustiadas. Afinal, muitos dos listados inicialmente como réus (havia 31) morreram, devido à sua idade avançada, como o próprio general Jorge Rafael Videla (1925-2013).
Entre os ainda vivos que ocupavam posições importantes na repressão estão o argentino Reynaldo Bignone (88), Santiago Omar Riveros (92) e o uruguaio Manuel Cordero (78).
DE KIRCHNER A MACRI
O fato de a causa Condor chegar a um veredito dilui temores das lideranças dos grupos de direitos humanos de que a transição entre o kirchnerismo e o governo de Mauricio Macri, que tomou posse em dezembro, reduzisse o ritmo dos julgamentos de direitos humanos.
Sob Néstor e Cristina Kirchner (2003-15), houve impulso para processar os crimes da repressão e a derrubada de leis de anistia e indulto.
Muitos apoiadores de Macri ainda esperam que o novo presidente coloque um pé no breque nesses processos.
Desde a campanha, porém, Macri disse que não interviria nos casos em andamento, e de fato tem agido assim.
"Não sofri nenhuma pressão, nem meus colegas que lidam com casos parecidos, desde a mudança de governo", diz Ouviña à Folha.
Macri, porém, segue ouvindo pedidos de grupos de familiares e advogados de militares presos, apoiados em veículos de comunicação conservadores, como o jornal "La Nación", para que ofereça algum tipo de anistia aos mais de 600 ex-militares que se encontram cumprindo pena em prisões comuns.
Sobre isso, o presidente ainda não se pronunciou.
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