Descrição de chapéu mudança climática

Não dá para discutir papel das florestas no clima sem ouvir quem mora lá, diz liderança do Xingu

Para Ianukula Kaiabi Suiá, abandono na gestão Bolsonaro teve o efeito colateral de fortalecer busca por direitos

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Canarana (MT)

Descendente dos povos kaiabi e kisêdjê, Ianukula Kaiabi Suiá tinha pouco mais de 20 anos quando começou a atuar em movimentos de defesa dos povos indígenas. Nunca foi uma tarefa fácil, ele conta, mas o ambiente piorou nos últimos quatro anos, momento em ele assumiu a presidência da Atix (Associação do Terra Indígena do Xingu).

Ianukula precisa combater o avanço de madeireiros e garimpeiros sobre territórios indígenas, a pressão para adotar monocultura em áreas de reserva e a catequização de evangélicos que coíbe até o artesanato de seu povo. Tudo isso em meio ao desmantelamento do órgão público que um dia já foi chamado de "mãe dos índios", a Funai (Fundação Nacional do Índio).

Essa lista passou a incluir espaço para os indígenas dentro das discussões da COP27, a 27ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas, no Egito, onde Ianukula esteve.

Ianukula Kaiabi Suiá, presidente da Atix (Associação Terra Indigena do Xingu); ausência do governo durante a gestão de Jair Bolsonaro fortaleceu mobilização dos povos indígenas - Lalo de Almeida/ Folhapress

"Não dá para fazer uma conversa sobre preservação das florestas dentro dessa discussão climática sem incluir quem mora lá, sem a presença dos povos indígenas", afirma ele.

Ianukula diz que os sinais do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) são positivos para toda agenda ambiental, mas reforça que será um desafio corrigir os muitos retrocessos do governo de Jair Bolsonaro (PL), que afetaram os indígenas nos últimos quatro anos.

O mais perturbador, afirma, foi o aumento da insegurança, escancarada pelos assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips.

Desse período ficou ao menos um ganho, diz ele: o fortalecimento das organizações indígenas.

O sr. foi à COP27. Qual a importância para os povos indígenas marcarem presença nesse evento?

O desequilíbrio do clima afeta diretamente os povos indígenas. Afeta nosso dia a dia, o nosso modo de vida, a nossa cultura. Somos integrados ao meio ambiente. Nós vivemos da caça e da pesca. A estiagem, o ressecamento da floresta e dos rios são ameaças a nossa segurança alimentar.

Não dá para fazer uma conversa sobre preservação das florestas dentro dessa discussão climática sem incluir quem mora lá, sem a presença dos povos indígenas.

E não estou falando apenas dos povos indígenas do Brasil, mas de todos os povos indígenas tradicionais do mundo inteiro. Por isso fomos à COP.

Mas também porque, no âmbito das negociações mundiais para deter o aumento da temperatura global, agora se fala muito em mecanismos de compensação para a redução ou a estabilização da temperatura. Os povos indígenas querem entender e participar dessas discussões.

Por que o mecanismo de compensação é voltado apenas para quem degrada? Por que não destinar parte das compensações para quem vive pela preservação?

E como foram essas discussões?

Dentro da estrutura da COP agora tem uma plataforma, fruto do Acordo de Paris, que funciona como um canal de comunicação oficial para que povos locais e comunidades indígenas possam apresentar contribuições para a convenção do clima.

Mas é importante dizer que vivemos uma situação séria. O governo atual do Brasil não abriu brechas para que o povos indígenas pudessem participar da formulação de políticas públicas que nos afetam, ou dialogar em relação a temas como o mercado de carbono ou acessar as negociações no âmbito internacional, dentro de convenções da ONU, como a do clima.

Qual a expectativa em relação a essas questões no futuro governo Lula?

Nós queremos que dialogue com os povos indígenas. A simples abertura do governo eleito para discutir com a gente já é um avanço. E todos os sinais até agora são positivos em várias questões ambientais.

Olhe a notícia de a Noruega voltar a contribuir para o Fundo Amazônia. Essa participação de outros países ajuda na proteção das florestas e dos povos indígenas. Parece que o próximo governo vai ouvir nossas vozes e poderemos tratar de temas que são muito importantes, como a retomada das demarcações, que foram represadas, e o atendimento à saúde.

Presenciamos muitos embates em terras indígenas nos últimos anos. Qual o seu balanço? Pela minha idade, não posso dizer como era a região há décadas, no tempo do meu pai por exemplo. A geração que antecedeu a nossa conta que havia muita invasão, de fazendeiros, madeireiras, pescadores e caçadores.

Da década de 1990 para cá, as coisas ficaram mais controladas, até porque os indígenas se informaram melhor, se organizaram, fundaram entidades, passaram a fazer a gestão de seu território.

No entanto, eu diria que, nos últimos quatro anos, as coisas voltaram a acontecer como antes.

No nosso território, o mais visado é a madeira. Mas existe uma outra questão, envolvendo a terra. Como falam que a terra é propícia para a agricultura nesta região, existe uma pressão para que as comunidades indígenas pratiquem a monocultura dentro de suas terras.

Nunca praticamos monocultura no Xingu. Mas dentro do Mato Grosso temos algumas experiências. Paresi, Nambikwara e Manoki praticam.

Mas as pressões aumentaram, sim, com os discursos e as ações do atual governo incentivando.

Por que não plantar soja ou milho? Por que não aderimos a monocultura? Aí tem uma filosofia. Por que vamos aderir a uma atividade que contraria a nossa forma de vida se podemos preservar a nossa produção? Se a nossa filosofia é proteger a floresta, por que vamos derrubar não sei quantos hectares de matas?

A gente precisa chamar a atenção para uma questão importante: os povos indígenas não são um só. Existem mais de 300 povos indígenas. O que temos em comum é a filosofia de viver em harmonia com a natureza.

O contato muito próximo com a sociedade não indígena levou alguns povos a uma situação de precariedade. Aí, a sobrevivência falou mais alto. Eles tiveram que abraçar a monocultura porque não havia outra saída.

Mas os povos que aderiram à monocultura se desvincularam do modo de vida indígena. É um direito deles. Mas para quem acredita no modo de vida indígena, um trato sagrado com a floresta, com tudo que tem nela, precisa prevalecer.

Nos locais onde há condição para que os povos indígenas vivam como gostam e na forma como querem, há preservação. No território do Xingu não precisamos de dinheiro para viver dentro das aldeias. Não é como numa cidade, onde você precisa comprar coisas para sobreviver.

O dinheiro é necessário para manter algumas atividades. Compra ferramentas para fazer uma roça, itens para pescar, rede para dormir. Mas não precisa de dinheiro para aquelas necessidades diárias.

Poderia dar uma ideia de como é essa rotina de vida na terra indígena do Xingu?

A gente costuma dizer que as famílias são autosustentáveis. Produzem a sua própria comida, plantam mandioca, batata. Tem soberania e segurança alimentar. Você vai encontrar produtos de fora, porque é claro que a gente, às vezes, quer variar, não comer só biju e peixe. Então, pode encontrar arroz, feijão, macarrão.

Falam que até o Xingu, uma demarcação antiga, está sendo ameaçada pelo desmatamento. É verdade?

Há vários indícios de retirada de madeira além dos limites da terra indígena. É por isso que os projetos do governo precisam ficar mais claros para evitar esse tipo de coisa.

Na discussão sobre preservação, a tensão é forte. Precisa ter uma imposição. Qualquer manifestação nesse sentido precisa mostrar que quem manda aqui dentro somos nós. Mato Grosso é um dos maiores produtores de grãos. O pensamento é muito voltado para isso e menos para a questão ambiental, como prioridade.

Como está a relação com a Funai?

Antigamente, a Funai era conhecida como a mãe dos índios —olha a importância. A gente entende que, agora, a Funai instituição e a gestão da Funai são coisas diferentes. Precisa separar isso.

Apesar de estar enfraquecida, a Funai é importante enquanto órgão indianista, principalmente na questão fundiária, na demarcação de terras e temas judiciais.

Ela perdeu força no governo Bolsonaro?

Foi antes, quando ela foi desmembrada, e deixou o atendimento da saúde e da educação indígena. Ali seu poder de atuação começou a ficar limitado. Ela foi perdendo também a tutela em relação aos povos indígenas, porque nós mesmos buscamos mais autonomia.

É claro que governos entram e saem, e a Funai dos últimos quatro anos não inspira confiança, nem responde às nossas expectativas, infelizmente. A Funai deixou de defender os indígenas em questões fundiárias. Em alguns lugares fez até o contrário, incentivou a invasão de terras.

Ela também foi desestruturada. A coordenação regional da Funai aqui tem hoje metade do efetivo de há dez anos. E o discurso dos gestores máximos da instituição hoje não é o que gostaríamos.

Como repercutiu no Xingu os assassinato do indigenista Bruno Pereira, servidor licenciado da Funai, e do jornalista Dom Phillips?

Os servidores da Funai se preocupam muito com segurança, porque eles ficam na linha de frente dos conflitos indígenas. O que ocorreu no Vale do Javari é um alerta, porque casos assim já vinham acontecendo, só que não repercutem.

No Xingu, quando as equipes vão fazer fiscalização nos limites da terra indígena, recebem ameaças de madeireiros e de proprietários de fazendas que não querem a presença desse tipo de órgão do governo. As pessoas têm medo de morrer assassinadas.

Embora tenha acontecido muito longe do Xingu, essa realidade e essa pressão ocorrem aqui também e em outros lugares.

O que tudo isso representa para nós? O movimento indígena ganhou força por causa de seus aliados, as ONGs e as pessoas simpáticas à nossa causa. Eles nos mostraram como lidar com um mundo diferente do nosso.

No contexto atual, o governo e parte da sociedade —e eu desejo que seja uma minoria— revelaram ter preconceito e discriminação com povos indígenas. Mostraram a cara. Então, ver nossos parceiros serem perseguidos é um ataque direto aos povos indígenas.

A sensação é de insegurança aqui também no Mato Grosso. Uma parte da sociedade matogrossense não está informada sobre a comunidade indígena, enquanto a propaganda dos ruralistas faz as pessoas acreditarem que questões indígenas são barreiras para o desenvolvimento, o que não é verdade.

Como foi para vocês durante o pico da Covid-19?

Foi um desastre para todo mundo, né? O governo estava despreparado para atender aos indígenas. Não havia pessoas suficientes ou um corpo técnico quando a Covid chegou. Tivemos dificuldades até para conseguir medicamentos. A resposta não foi na velocidade necessária. Muitas pessoas morreram por causa disso.

Qual o tamanho da comunidade indígena no Mato Grosso?

São 43 povos e 45 mil indígenas no estado do Mato Grosso. Nem todas as terras indígenas estão demarcadas. Desse total, 16 povos, 8.000 indígenas, estão no TIX .

Nos avisaram que nas conversas com vocês não deveríamos usar o termo parque, mas terra indígena...

TIX, Terra Indígena do Xingu, é um termo que passou a ser usado nos últimos 10 anos. Ela foi uma das primeiras demarcações em grande proporção no Brasil. Foi criada como Parque Nacional do Xingu em 1961. Nem tinha a palavra indígena, depois um decreto incluiu.

Como toda nova geração questiona tudo, a minha questionou o termo parque. Parque não é uma denominação digna para uma terra que consideramos sagrada. Embora a nomenclatura ainda use parque, nós preferimos chamar de território indígena.

Essa diversidade toda já existia na área ou os povos foram trazidos de outros locais?

Alguns estavam nas proximidades. No caso dos Kisêdjê, por exemplo, o território ia até Querência. A terra deles tinha ficado de fora, mas o governo trouxe para dentro. É a terra indígena de Wawi agora.

Mas muitos foram transferidos, sim. Os Kaibi eram da região do Tele Pires e do Rio dos Peixes. Os documentos mostram e os parentes mais antigos contam que eles sofreram naquela região impacto dos serigueiros, que chegaram a escravizar indígenas. Depois vieram também conflitos com o avanço do agronegócio. Então, uma parte foi transferida para o Xingu.

Esses conflitos econômicos entre indígenas e o agronegócio são inevitáveis ou há alternativas?

São conflitos econômicos para não indígenas. Para o indígena é um conflito pela terra para garantir a sobrevivência. É incompreensível para o não indígena porque o indígena quer a terra já que não produz nada nela, dizem eles.

A terra tem outra função. A terra é a área que preserva a cultura. Como preservar a cultura se não for possível pescar com arco e flecha, sem ter uma floresta para caçar ou para manter os conhecimentos sobre a medicina natural? Sem terra, o índio deixa de ser índio.

E o incentivo do governo vai nessa linha. Se um número grande de índios aderir à monocultura na terra indígena, um dia o governo pode chegar e dizer que lá não tem mais índio. Acaba com a demarcação.

Como tem sido a questão dos evangélicos? Dizem que eles têm ações fortes nas aldeias.

Vou contar uma história. Há um tempo, a gente fez um intercâmbio com a região do Rio Negro. Tinha de ir uns quatro dias por rio e, depois, era mais um tempo caminhando pela floresta. Era floresta, floresta, floresta e aí, bem no meio, a primeira coisa que aparecia era a cruz de uma igreja imensa. Não dava para entender como aquilo estava lá.

Gersem Baniwa [filósofo, antropólogo e professor indígena] uma vez foi convidado para uma assembleia da Atix e fez uma palestra sobre como aconteceu o processo de catequização de povos do Rio Negro. Ele avisou que, se a gente não tomasse cuidado, aconteceria o mesmo no Xingu.

E o avanço deles aqui foi muito rápido. Vieram com a velocidade do vento. Em 2009, uma aldeia tinha contato. Em cinco anos, estavam em 30% do Xingu.

Igreja ainda não tem, mas já acontecem culto e batizado. As lideranças indígenas são contra, mas as igrejas conseguem entrar porque oferecem bens materiais, e algumas pessoas aceitam —e nem é porque entendem a religião.

Depois que deixam entrar, começa a lavagem cerebral. Aí tem quem deixe de cantar, de produzir artesanato. Isso vem acontecendo, infelizmente. Você tenta denunciar, mas as autoridades não se importam.

Aqui na região, teve um coordenador regional da Funai que era pastor. Depois de um longo protesto que fizemos, trocaram. O problema não é ser pastor, mas colocar dentro de um órgão indianista pessoas que não têm a mínima noção do que uma comunidade indígena.

Eu acredito que as pessoas têm liberdade de escolha. Mas pelo que a gente vê aqui, nem sei mais o que é ser evangélico. O que fazem aqui é outra coisa. Minha família, uma vez, foi chorar um morto. Chegaram algumas pessoas que se diziam evangélicas. Queriam ressuscitar. Uma loucura. Isso é fanatismo.

Às vezes, parece que os povos indígenas saíram fortalecidos com toda essa pressão durante o governo Bolsonaro. É isso mesmo ou é só uma impressão?

Sim, está certo isso. Aqui no Xingu, a gente sabe que o governo atua mais em umas regiões do que em outras. E onde o governo foi mais ausente é também onde as associações indígenas mais se fortaleceram, porque aprenderam a sobreviver por conta própria.

Você pode expandir isso para o Brasil inteiro. Onde o governo se ausentou, os indígenas são mais organizados, ativos e conscientes. Tudo isso que está ocorrendo durante o governo Bolsonaro nos mostrou que precisamos entender melhor nossos direitos.

Nesse ambiente todo, vocês têm conseguido manter a cultura entre os mais jovens?

O que nos tem ajudado com os jovens é a internet. Diferentes povos se comunicam hoje por ali. Ela facilita o intercâmbio. Quando um jovem Kaipo tira uma foto todo ornamentado e posta, um jovem indígena no Xingu também quer tirar uma foto e mostrar que sua cultura está preservada. Isso está acontecendo.

Muitos jovens saem da terra para estudar. Eles podem virar até médicos, mas a nova geração sabe quais são as condições para ser reconhecida como indígena. Saber a sua origem, a história do seu povo, a cultura e a língua. Se não tiver isso, vai ser um indígena fake.


RAIO-X

Ianukula Kaiabi Suyá, 44
Descendente dos povos Kaiabi e Kisêdjê, é formado em Administração pela Universidade Norte do Paraná. Militante do movimento indígena desde ano 2000, assumiu em 2019 a presidência da Atix (Associação Terra Indígena Xingu)

A reportagem viajou a Canarana (MT) com apoio da Rede Energia e Comunidades.

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