Agenda ambiental do rei Charles 3º vai de carimbó e pulseira a lobby por investimento

Monarca já visitou a Amazônia brasileira e se encontrou com lideranças indígenas, como o cacique Raoni

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São Paulo

Manifestantes gritavam "o povo unido jamais será vencido" durante a edição de 2009 do Fórum Social Mundial, em Belém (PA), quando o telefone de Caetano Scannavino, 57, tocou. Ao atender, ele ouviu um convite improvável. "‘Aqui é da embaixada britânica. Queremos saber se o senhor aceitaria receber uma visita de alguém do altíssimo escalão do Reino Unido, mas o senhor precisa manter sigilo’, disseram".

O coordenador da ONG Projeto Saúde e Alegria, que trabalha com o desenvolvimento de comunidades na Amazônia, arriscou. "É o príncipe Charles? ‘Não podemos dizer.’ Mas eu sei que é ele. ‘Não podemos revelar’, e ficou nisso, no meio daquele barulho".

Aceitar o convite foi a parte fácil. Os preparativos, com estritas regras de segurança e protocolo, levaram dois meses. Agentes da segurança particular do príncipe, da Scotland Yard, da segurança do Pará, da Capitania dos Portos e da Polícia Federal se espremeram no escritório da ONG em Santarém (PA) para definir o roteiro.

príncipe dança carimbó no meio de roda
O rei Charles 3º, na época príncipe, conheceu projetos e dançou carimbó em Santarém (PA) durante visita de 2009 ao Brasil - 14.mar.09/Projeto Saúde e Alegria

Na manhã de 14 de março, Charles chegou a Santarém. Era o último dos quatro dias daquela visita ao Brasil. "O cerimonial avisava que não podia entregar presente e nem interferir. Eu disse que a regra era: a terra é da comunidade, eles que mandam", diz Caetano.

O então herdeiro da coroa britânico, que será coroado neste sábado (6), conheceu a vila de Alter do Chão, um projeto de barco-hospital, a cidade de Belterra, a Floresta Nacional do Tapajós e a comunidade de Maguary. Lá, como o mundo registrou, ele seguiu o protocolo local e dançou carimbó.

Brasil e ambiente já não eram novidade para Charles. A visita ao país foi a quarta, depois de 1978, 1991 e 2002, e a primeira com a agora rainha Camilla Parker-Bowles.

A pauta ambiental foi marcada na agenda do príncipe em 1970. Aos 21 anos, ele discursou sobre os danos causados por plásticos, gases estufa e a poluição marinha.

Para o professor Renato de Almeida Vieira e Silva, o rei Charles 3º foi um "influencer" pelo clima antes de o tema virar moda. Isso pode ser uma marca do seu reinado, diz o autor de "God Save The Queen - O imaginário da realeza britânica na mídia".

"Ele é um soberano do século 21, e a monarquia tende a não ser tão aprovada entre a população mais jovem quanto entre os mais velhos."

Falar de ambiente e mudança climática é a ferramenta para essa conexão. O especialista aponta que, para dentro do reino, Charles também investe em filantropia, fazendas orgânicas e projetos como a Nansledan, na Cornuália. O rei será o "senhorio" da cidade, que deve ter um emprego para cada família e atender a critérios de sustentabilidade.

Para fora, leva a bandeira do ambiente para se posicionar como articulador de investimentos.

No Brasil, em 2009, também visitou em Manaus a sede da ONG Oela, que começou com uma escola e oficina que ensinava jovens em situação de vulnerabilidade social e econômica a construir instrumentos musicais com madeira nativa certificada.

Outro rebuliço para os preparativos envolveu obras de infraestrutura no Conjunto São Cristóvão, onde está a sede da Oela, na zona leste da capital amazonense.

"Foi um mês de trabalho, as ruas foram asfaltadas. A gente fez várias rotas por onde ele passaria. E foi tudo com quebra de protocolo. Tirou fotos e cumprimentou garis e crianças, que diziam ‘I love you Charles’", lembra a diretora, Jéssica Gomes, viúva do fundador Rubens Gomes, morto em 2020.

O príncipe ficou encantado com uma ocarina. "‘Quantos sons de pássaros são reunidos neste instrumento?", ele perguntou. E eu disse que eram 25", afirma Jéssica.

As agendas de Charles também incluem lideranças indígenas como o caiapó Raoni Metuktire. Em 2014, o então príncipe o recebeu na Inglaterra com outros representantes.

"Foi uma reunião muito privada, o príncipe foi muito mais aconchegante com o cacique Raoni. Passamos mais de uma hora falando sobre povos indígenas e devastação na região do Xingu. Ele queria saber como ajudar", diz Sue Cunningham, fotojornalista com três décadas de experiência na região e administradora da ONG Tribos Vivas.

"Raoni disse ‘fale para o mundo, para os chefes. Fale para as companhias pararem de investir na destruição de nossa casa. O mundo todo vai sofrer’", diz Sue, que fez a tradução simultânea do encontro. "O príncipe disse 'os povos da floresta são cientistas ambientais muito talentosos'."

Charles sempre contrariou a regra que proibia a manifestação sobre temas políticos, diz Francisco Vieira, professor de história.

"O rei não é uma pessoa, ele encarna uma nação. A concepção é de que ele é a cabeça de um corpo social." O monarca, afirma o professor, deve seguir o que decide o governo, formado pelo Parlamento e pelo primeiro-ministro —atualmente, o conservador Rishi Sunak.

Como não deveria falar, usa símbolos para conseguir atualizar a relevância do reinado. Um deles é a pulseira indígena dada por Domingos Peas, liderança da Amazônia no Equador, que apareceu no primeiro retrato oficial do monarca e rendeu notícias.

"Ele não pode falar, mas pode demonstrar na roupa, no braço, o apoio que dá à questão da preservação."

Ainda, as viagens também são agenda de interesse do capital britânico. "Rei viaja para defender interesse. A rainha Elizabeth 2ª, por exemplo, veio ao Brasil em 1968 para abençoar a ditadura e o investimento de firmas inglesas na construção da Ponte Rio-Niterói", afirma Francisco.

Seja com a fundação que criou para proteger florestas tropicais, a chamada para um plano global no Fórum Econômico Mundial de 2020 ou a reunião com governadores da Amazônia na COP26, da ONU, Charles tem a seu favor um mercado preocupado com seu tema favorito.

O governo britânico anunciou a criação de 25 reservas naturais nos próximos cinco anos. A primeira delas fica no condado de Lincolnshire, na costa leste da Inglaterra, e faz parte das festividades da coroação.

O projeto Planeta em Transe é apoiado pela Open Society Foundations.

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