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Fotojornalista especializado na cobertura de guerras, vencedor da medalha Robert Capa

Descrição de chapéu Rússia

Putin não está totalmente errado

Caso invada a Ucrânia, presidente russo terá almas mortas a vender, como personagem de Gógol

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Em julho de 2021, Vladimir Putin publicou o texto "Sobre a unidade histórica de russos e ucranianos", no qual insistia que os dois povos são na verdade apenas um e que a verdadeira soberania da Ucrânia só é possível ao lado da Rússia.

Não faltaram análises desqualificando os argumentos elaborados pelo presidente russo como delírios neoditatoriais que desrespeitam a vontade do povo ucraniano de se aproximar da Europa, salientando que a soberania política e a integridade nacional ucraniana devem ser respeitadas por Moscou.

É fato que uma grande parte do povo ucraniano deseja se distanciar da influência russa —principalmente da influência política, que, para muitos, em especial a população da parte oeste do país, pode transformar a Ucrânia numa nova Belarus. Mas totalmente errado Putin não está.

Pôster do presidente russo Vladimir Putin é usado como alvo em trincheira ucraniana próxima a região de conflito com separatistas em Lugansk - Anatolii Stepanov - 22.jan.22/AFP

À parte de qualquer outra questão, russos e ucranianos, assim como outros povos do leste europeu, são eslavos. A Rússia é o país no mundo com a maior população eslava —a Ucrânia ocupa a terceira posição.

Trata-se de um grupo etnolinguístico de sociedades que falam as várias línguas eslavas, com uma rica história que abrange 13 séculos. "Slava" significa glória, e "slovo", palavra. O que muitos não sabem é que a origem etimológica do termo "escravo" vem da palavra "eslavo".

O termo remonta ao século 9º, quando populações eslavas do mar Negro eram capturadas e comercializadas por muçulmanos da Península Ibérica e do norte da África para trabalho forçado.

Do comércio de pessoas eslavas nasceu o adjetivo e substantivo latino "sklava", que passou a ser usado como sinônimo de "cativo". O termo se popularizou e foi adotado em línguas e culturas ao redor da Europa, tornando-se, por exemplo, "slave" em inglês e "escravo" em português.

Desde então, o termo continua sendo usado para descrever o indivíduo desumanizado que está ou foi privado de sua liberdade, sendo submetido à vontade de outrem e definido como propriedade de alguém.

Apesar de todos os erros cometidos, de qualquer transformação histórica, de toda a luta contra os crimes e preconceitos praticados contra aqueles que sofreram com essas condições, ainda hoje, mil anos depois, em todo o mundo, os povos um dia "escravizados" continuam sendo marginalizados, tratados de forma pejorativa e como inferiores.

As conquistas sociais do pós-Guerra não conseguiram eliminar o classismo europeu e, num continente onde todos os tipos de escravização e discriminação têm uma longa história, os europeus orientais, a maioria dos quais eslavos, continuam na base da hierarquia.

Embora países do centro-leste europeu tenham sido oficialmente aceitos na União Europeia há mais de uma década, poloneses, tchecos, eslovacos, eslovenos, croatas e búlgaros continuam sofrendo discriminação nos ditos países "ocidentais".

Inicialmente dispostos a trabalhar mais ganhando menos, migrantes do leste eram vistos como desejáveis e rotulados como "invisíveis", devido à pele branca. Nos últimos anos, os discursos públicos contra a migração de trabalhadores dessas regiões, especialmente poloneses, tornaram-se mais hostis, no contexto da crise econômica de 2008 e, posteriormente, na Inglaterra, durante e após o brexit.

Mesmo que um dia sejam aceitos na União Europeia e na Otan, os ucranianos —principalmente aqueles que desejam migrar para países ricos da Europa— dificilmente serão tratados de forma diferente, e talvez seja esse o ponto em que Putin, sem acertar, também não erra.

Nikolai Gógol, descrito no texto de Putin como um patriota, escreveu "Almas Mortas". O autor, que morreu louco, havia pensado no livro como o primeiro de uma trilogia que deveria ser nada menos que uma Bíblia para uma nova Rússia. A história se passa durante o período feudal russo, que durou até o final do século 19. Narra os tormentos morais do personagem principal, Tchitchikov, misteriosamente interessado em comprar as almas de escravos mortos.

Corruptos, violentos, mentirosos e interessados apenas em defender seus próprios interesses, os senhores feudais russos tinham escravos que faziam parte da sua fortuna. Eram contados como gado e valiam como propriedade, não como seres humanos.

Apesar de não estar certo e sem estar totalmente errado ao evocar as ligações históricas entre russos e ucranianos, Putin, caso continue usando da força e da corrupção para defender seus interesses e caso invada a Ucrânia, também terá muitas almas mortas de eslavos para vender. Assim como os senhores feudais da Rússia descrita pelo "patriota" Gógol.

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