No Reino Unido, todas as conversas giram em torno do "partygate", como é conhecido por lá o escândalo das festas secretas organizadas pela equipe do premiê Boris Johnson durante o primeiro confinamento.
Obrigado a se desculpar publicamente por seus descasos e omissões, Boris enfrenta uma rebelião dentro do próprio partido. Com grande autoridade moral no seio da desmoralizada classe política, o ex-deputado conservador Rory Stewart se insurgiu, em artigo no Financial Times na semana passada, contra a "cultura e o sistema" que interpretam a política como um simples jogo.
Porém, enquanto a política doméstica é dominada por reportagens estrepitosas dos tabloides, o país vive dias decisivos e instigantes nas relações internacionais. No embate com a Rússia, Londres assumiu a liderança de uma aliança regional com a Polônia e os países Bálticos em defesa da Ucrânia. O contraste entre o ativismo diplomático britânico e a hesitação da União Europeia ficou evidente na semana passada, quando o recém-empossado governo alemão de Olaf Scholz bloqueou uma operação de transferência de armas para a Ucrânia coordenada pela Estônia, aumentando a desconfiança entre membros da Otan.
Momentos depois, Berlim teve de demitir às pressas um comandante acusado de se manifestar publicamente a favor da Rússia. A Alemanha não é a única que se mostrou insegura diante dos acontecimentos. O presidente americano Joe Biden deixou a comunidade internacional de cabelo em pé ao fraquejar na hora de garantir que Washington jamais toleraria uma invasão russa da Ucrânia.
A própria Otan parece paralisada por causa da divergência entre a posição americana, mais agressiva, e a europeia, atenta aos riscos que um conflito representaria para sua segurança energética. O racha interno da instituição é rico em simbolismos. A aliança é tida como a principal responsável pela escalada militar russa por não respeitar os compromissos territoriais assumidos nos anos 1990.
Durante anos, o Reino Unido foi acusado de atuar de forma errática e comprometer a parceria entre os EUA e a Europa. Agora, é o único ator com uma estratégia coerente e proativa para lidar com a Rússia. Vários fatores explicam o protagonismo da sua diplomacia.
Um deles é que o brexit, pelo menos no campo da política externa, parece ter tido o efeito imaginado pelos seus idealizadores. O Reino Unido jamais teria aberto uma frente na Europa Oriental se tivesse de pedir direito de passagem aos membros da UE. A maior agilidade de Londres também se reflete na comunicação estratégica. No fim de semana, numa cena hollywoodiana, o ministério das Relações Exteriores emitiu um comunicado acusando a Rússia de planejar instalar um governo fantoche na Ucrânia em caso de invasão. Recheado de detalhes inusitados, o texto incluía uma lista de possíveis ministros.
Outro fator que parece estar pesando é a realização, tardia mas brutal, dos efeitos nefastos da penetração de capital russo no sistema democrático britânico. Relatório recém-publicado da Chatham House deixou clara a profunda corrupção de políticos e empresários por oligarcas próximos a Putin, denunciada há anos pela sociedade civil. Pelo menos parte dos agentes de Estado estão conscientes de que a oposição diplomática à Rússia também é assunto de segurança interna.
Um breve olhar para a história do império britânico nos ensina que, muitas vezes, os grandes momentos da política externa passam ao largo do debate público. É bem provável que, nas próximas semanas, os jornais continuem fazendo manchetes sobre as farras de Boris durante a pandemia enquanto Londres lidera sozinha o Ocidente numa crise internacional pela primeira vez em décadas.
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