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Repórter especializada em economia, é formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. Foi ombudsman da Folha de maio de 2019 a maio de 2021.

A cultura do cancelamento

Crítica e diálogo não devem ser interditados nem mesmo por boas intenções

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A discussão da vez é a chamada "cultura do cancelamento" das redes sociais. Como isso tem afetado o jornalismo?

Não é preciso ser grande usuária das redes para entender o que o termo significa: a tentativa de proscrever na internet alguém que apresentou um comportamento considerado reprovável, ou seja, o velho linchamento público.

Entre ataques a reputações, que podem tanto ser esquecidos em alguns dias quanto ter repercussão mais séria, o cancelamento interdita o diálogo e não constrói muita coisa no lugar, uma vez que oferece aos "canceladores" a falsa sensação de que sua boa ação política está concluída sem que nenhum dos lados se comprometa a nada.

O assunto ganhou mais visibilidade quando a revista americana Harper's publicou, no início de julho, uma carta que ecoava as críticas à cultura do cancelamento. O texto ligava essa cultura aos protestos mais recentes por justiça social e racial.

Na carta, artistas, escritores e jornalistas reconhecem que os protestos trazem à tona pedidos mais amplos de igualdade e inclusão em toda a sociedade, mas dizem que esse necessário acerto de contas alimentaria um clima de intolerância—que amedrontaria artistas, escritores e jornalistas, receosos de perder seus meios de subsistência ao se afastarem do que seria esse novo consenso.

Concordo: não há como se posicionar a favor do silenciamento pregado por "canceladores".

Dito isso, muitos dos que se dizem ameaçados pelo cancelamento estão tão desacostumados ao contraditório que, ao se depararem com ele, correm para denunciar o risco de perderem seus espaços justamente nas grandes vitrines que sempre ocuparam.

Se a ideia era alertar esses novos personagens que pedem maior inclusão sobre os riscos de censura embutidos na disputa, talvez fosse mais efetivo dizer apenas: "Não façam como nós sempre fizemos". Afinal de contas, as vozes que vêm dos protestos é que sempre estiveram fora das discussões.

Mas não são só pessoas que são canceladas. Um jornal também pode ser cancelado. Isso acontece quando leitores discordam de algum conteúdo ou se sentem insatisfeitos ou ofendidos por ele.

O fenômeno, legítimo, é velho, mas se intensifica em momentos de maior embate político como o atual.

Sempre que um jornal aborda um tema polarizado, faz críticas mais fortes ao governo ou é atacado por ele, o leitor reage de modo muito parecido com o que ocorre nas redes sociais.

No caso da Folha, isso se reflete, no dia seguinte ao ocorrido, num aumento de 20% a 30% dos pedidos de cancelamento de assinatura. O efeito disso no volume de assinaturas mensal é pequeno, mas significativo em relação à média diária de cancelamentos registrada pelo jornal.

No ano passado, causaram esses pedidos as reportagens publicadas em parceria com o site The Intercept, feitas a partir de mensagens trocadas entre procuradores da Lava Jato e o então juiz Sergio Moro, além de uma entrevista com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Em 2018, matéria em que a Folha apontou o fenômeno de empresas bancarem os disparos em massa contra o PT no período eleitoral foi o estopim para esse tipo de pedido.

É bem verdade que, às vezes, a imprensa também pode ajudar a promover cancelamentos. Isso ocorre quando produz reportagens sem que o outro lado seja ouvido ou quando não cumpre os procedimentos adequados de checagem.

Após ler entrevista no sábado (25) com mulher indiciada por manter uma pessoa em condição análoga à escravidão, uma leitora disse que ficou com a impressão de que o jornal ajudou no cancelamento da mulher.

Na verdade, a Folha publicou reportagem sobre o ocorrido com base em dados da denúncia. Depois, publicou uma entrevista com a envolvida, que deu o seu lado da história—num exemplo de cobertura burocrática e com algum exagero, como chamar uma pessoa com cargo de gerente de "executiva de uma empresa de cosméticos".

Por fim, há ainda o cancelamento de instituições: ataques à ciência, à universidade ou à política—a esta última com a contribuição do próprio jornalismo nos últimos anos, ao, muitas vezes, igualá-la a corrupção.

Entre as instituições, a imprensa tem sido um dos alvos prediletos da prática inquisitorial, escolhida como bode expiatório por governantes que não desejam ter suas atuações avaliadas e criticadas.

No fundo, o fenômeno do cancelamento mobiliza preocupações que sempre estiveram presentes no debate: o diálogo e a crítica não devem ser interditados nem pelo autoritarismo nem pelas boas intenções.

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