Flavia Lima

Repórter especializada em economia, é formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. Foi ombudsman da Folha de maio de 2019 a maio de 2021.

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Flavia Lima

Vale torcer pela morte?

Tradicionais na Folha, textos polêmicos nem sempre obtêm bons resultados

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Na semana em que Brasil passou a marca de 70 mil mortos pela Covid-19 e na qual o presidente Jair Bolsonaro anunciou que está com o vírus, o colunista da Folha Hélio Schwartsman surpreendeu leitores com artigo intitulado "Por que torço para que Bolsonaro morra".

Em exercício teórico cujo argumento central é que o valor das ações vem dos resultados que elas produzem, Schwartsman defendeu que o sacrifício de um indivíduo (o presidente) pode ser válido se dele resultar um bem maior (as vidas salvas pela adoção de uma estratégia de combate ao coronavírus).

Ilustração Carvall para coluna  Ombudsman de 12 de julho de 2020, uma figura abstrata
Folhapress

Parte dos leitores entendeu o recado como uma crítica contundente ao modo como o presidente conduz a pandemia. Outros desaprovaram o texto.

"Fico pensando se esse tipo de abordagem não nos coloca em um vale-tudo em nome do direito à opinião. Desejar a morte de uma pessoa e publicar isso é algo muito sério", disse um leitor.

A Folha tem um histórico longo de colunistas cuja característica mais marcante é a provocação. Entre eles, o agressivo Paulo Francis, muito popular na década de 1990, é o caso mais emblemático.

Atualmente, o engenheiro Helio Beltrão é destaque entre os colunistas que atraem críticas dos leitores, seja ao politizar o uso da hidroxicloroquina, seja ao chamar manifestantes antirracistas de ditadores, ligando os protestos recentes a uma "estratégia hegeliana das tesouras dialéticas".

Schwartsman, há mais de 30 anos na Folha, não se encaixa em nenhum dos perfis. Fazendo uso de argumentos que buscam suspender os juízos de valor ou justificá-los apelando para a filosofia ou para a sociobiologia, o colunista é visto como repositório da isenção científica, da moderação.

Daí o espanto dos leitores, que perguntaram se o texto estaria de acordo com as boas práticas da Folha.

O Manual da Redação é claro ao rechaçar censura e outras agressões à liberdade de expressão, reconhecendo, no caso de abuso comprovado dessa liberdade, a responsabilização posterior dos autores, nos termos da lei. Mas houve crime?

Para tentar enquadrar o jornalista, o ministro da Justiça, André Mendonça, recorreu à Lei de Segurança Nacional. Em artigo na Folha, Fabio Wajngarten, da Secretaria de Comunicação, justificou a investigação apelando aos limites da liberdade de expressão.

Os abusos dessa liberdade estão descritos na legislação.

O trecho da lei a que recorreu o ministro fala em calúnia e difamação contra os presidentes dos três Poderes. Calúnia é a atribuição falsa de fato definido como crime, enquanto difamação é a imputação de fato ofensivo à reputação.

O desejo de morte de uma pessoa não se enquadra em nenhuma das definições.

Além disso, o governo expõe o caráter contraditório da medida ao recorrer aos limites da liberdade de expressão contra um texto de opinião, enquanto evoca essa mesma liberdade para justificar os impropérios de blogueiros bolsonaristas.

Schwartsman pode ter sido imprudente, mal educado, imoral ou amoral. Mas não cometeu um crime.

Reagiu com o fígado, como disse Thiago Amparo, também colunista da Folha, mas se as vísceras produzissem bons argumentos, teríamos na figura do presidente um grande orador.

A Folha repele as tentativas de criminalizar o exercício da opinião, diz Vinicius Mota, secretário de Redação. Como o leitor já sabe, Mota afirma também que o jornal assegura ampla liberdade de expressão a seus colunistas, que atuam no campo da opinião e não influenciam a produção de conteúdo noticioso do jornal.

Essa liberdade é louvável e precisa ser ampla. Helio Beltrão segue dizendo o que pensa, mas, para lembrar de outro exemplo, Anderson França, colunista polêmico que escrevia no site, durou menos de um ano no jornal. Qual é a regra?

De modo legítimo, a Folha busca audiência. Com os seus mais de mil comentários no site (um texto popular costuma ter entre cem e 300 comentários), a coluna a entrega. Mas briga entre famosos também dá cliques, sem que o saldo em termos de credibilidade seja significativo para o jornal.

Um outro aspecto é que a coluna aproxima as páginas do jornal do vale-tudo das redes sociais, universo em relação ao qual a Folha e toda a imprensa buscam se diferenciar.

A partir de uma abordagem simplificadora, o texto parece contribuir pouco para o debate público, sobretudo em um ambiente como o atual, altamente polarizado.

Em uma coluna de dezembro de 2019, Schwartsman oferece um caminho para contornar o ambiente da internet, em que todos são aplaudidos, não importa a tese que defendam. Esse caminho seria a autocensura.

Segundo o próprio autor, "é um tipo de censura que, se exercida com discernimento, tende a ser pró-social". Poderia ter servido bem à coluna em questão.

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