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Jornalista, crítico gastronômico, curador de conteúdo e apresentador do canal de TV Sabor & Arte

Pode haver beleza em andar de carro no trânsito selvagem de centros urbanos

As cidades podem ter uma beleza urbanística e arquitetônica que seja amplificada pelo movimento

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Uma das pessoas mais charmosas que já conheci —o galerista e marchand Fernando Millan, que morreu aos 73 anos —20 anos atrás— uma vez me surpreendeu ao comunicar, numa corriqueira tarde paulistana, que sairia por uns instantes de seu apartamento (onde eu estava com seus filhos, amigos de longa data) para “dar uma volta de automóvel”.

Dar uma volta de automóvel em São Paulo! Soou-me como um contrassenso andar de carro, sem destino, na selva paulistana (isso é passeio?), mas a ideia ao mesmo tempo me maravilhou: pareceu uma coisa cosmopolita, uma apropriação da estética urbana como nunca me ocorrera antes.

Millan, o pai —cujo filho, também Fernando, arquiteto, era meu elo mais forte com a família— sempre estivera (desde que os conheci, na tenra adolescência de colégio) em pontos nevrálgicos da cidade. Quando o conheci, morava com a família no edifício mais lindo, pacato e civilizado (de poucos andares e todo aberto no térreo, adornado por uma rampa sinuosa) da avenida Higienópolis.

O apartamento era de uma elegância modernista, emoldurada por paredes de concreto com obras de arte, que me fascinava.

O galerista, que projetou nomes como Tunga e Jac Leirner, entre tantos e tantos, morou também em Cidade Jardim, na emblemática e arrojada casa projetada para eles por Paulo Mendes da Rocha, debruçada sobre o parque Alfredo Volpi. 

Ali, sobre a laje refrescada por um jardim aquático, envoltos por volutas penetrantes e proibidas, avistávamos ao longe o passar das horas no relógio encarapitado sobre outra joia da arquitetura paulistana, o Conjunto Nacional.

Mas a frase corriqueira que me marcou foi pronunciada na sua moradia seguinte, um apartamento (belo como sempre, por fora e por dentro) na parte mais larga da avenida Nove de Julho, já no trecho do Jardim Europa. 

Foi de onde, com seu rosto adornado por espessas mechas brancas de cabelo que se completavam nos tufos do bigode, ele sairia para “passear de automóvel”.

Poderia ser um gesto apenas antiquado e nostálgico —evocação do tempo em que, por exemplo, era chiquérrimo desfilar na nascente avenida Paulista num raro e caro automóvel. Mas deve ter sido mesmo um sentimento de quem conseguia ver beleza na cidade (e esse trecho da avenida ainda a tem) e fruir a noção de movimento no espaço urbano hoje tão congestionado.

Pensei nisso várias vezes desde então —uma delas, numa fieira de 28 dias pela Europa, há quase dez anos, gravando episódios para a série “O Guia”, que fizemos para o National Geographic Channel. 
Visitando as mesmas cidades em outras ocasiões, elas pareciam tão civilizadas, com suas redes de transporte coletivo que sempre me serviram com pontualidade.

Mas eram impressões de quando estive ali a passeio, ou em trabalhos sem tanto horário marcado, sem necessidade de enfrentar os momentos de rush, sem múltiplos compromissos durante o dia. 

Já durante as gravações, diante de uma escala de várias pautas sucessivas, às vezes 14 horas por dia, com tempo apertado... não deveria ser a decisão mais esperta locomover-se de carro. Mas carregando cem quilos de equipamento não tínhamos como escapar dos deslocamentos com vans e táxis.

E eis que o trânsito de São Paulo, que parecia ser o mais engarrafado e desumano da terra, se multiplicou ante meus olhos nas mais belas e ricas cidades por onde passamos. 

Na hora do rush (e não somente), Londres, Paris, Madri, Istambul (sem falar de Nápoles) podem ser tão infernais quanto aqui. Não preciso nem comentar como foi a experiência nos países latino-americanos —Lima, Bogotá...

E, no entanto, as cidades podem ter uma beleza urbanística e arquitetônica que, como na preferência dos futuristas italianos, seja amplificada pelo movimento. No caso, o movimento do corpo de quem observa. Desde que num horário em que seja possível deslocar-se minimamente na máquina que tanto já encantou a humanidade.

Para isso é preciso também ter olhos para ver. Visão para a beleza era o que não faltava a Fernando Millan.

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