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Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

'O Beco do Pesadelo' cria circo chefiado por Trump em que só falta Bolsonaro

Filme de Guillermo del Toro mostra que a aposta em enganar os imbecis se confunde com a possibilidade de ser um imbecil

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Vejo que tomei uma decisão errada com relação aos filmes de Guillermo del Toro. "O Labirinto do Fauno" simplesmente deixei passar. Quanto ao elogiadíssimo "A Forma da Água", o trailer me deixou com aversão pela ideia de uma criatura verde, presa dentro de uma cuba, tendo um caso de amor.

Bizarrice tem limite, pensei, e ficção científica costuma me produzir um tédio cósmico. Mas "O Beco do Pesadelo", filme do diretor mexicano que agora entra em cartaz, é coisa diferente.

Bradley Cooper em cena do filme 'O Beco do Pesadelo', de Guillermo del Toro - Divulgação

A mistura já me agrada: circo, mágica, psicanálise e história policial. A bizarrice é moderada. Cabe avisar, em todo caso, que no filme não faltam cicatrizes, figuras de dar medo, jorros de sangue humano e animal, além de degradações diversas.

Nada é para ser levado muito a sério, e sem dúvida uma ótima atriz como Cate Blanchett sabia perfeitamente que lhe cabia exagerar, quase até a caricatura, seu papel de psicanalista maquiavélica e bocão de Joan Crawford.

É a femme fatale dos filmes de 1940 num jogo de gato e rato com o espertalhão Bradley Cooper, que sem ser discípulo de Freud exerce com sucesso o ofício de leitor de mentes, com ou sem truques, em números de circo e de teatro de variedades.

A ideia de que "nada é para valer" organiza o filme, em vários níveis. As cenas de violência impressionam, mas também, por vezes, fazem rir. As primeiras cenas de "O Beco do Pesadelo" transportam o espectador para um cenário de circo que tem pouca coisa de realista, impregnado que está de referências à história do cinema.

O duro trabalho de levantar e baixar a lona do circo, ao longo de uma noite chuvosa —em pleno deserto americano— é filmado no que parece uma versão neorrealista do desenho animado "Dumbo", de Walt Disney.

As cores de neon, entre antigos cartazes de atrações sensacionais, mas já sem brilho, lembram o estilo pós-moderno de "O Fundo do Coração", de Francis Coppola (1982). E esse mundo que é menos de circo e mais de show de horrores é, sem dúvida, o mesmo de "Monstros" (1932), dirigido por Tod Browning.

Os gatos pingados que se impressionam com o homem-serpente, a mulher-aranha, o museu de fetos aberrantes guardados em formol, são capazes de acreditar em tudo. Verdade que a mulher-aranha, de tão falsa, só impressiona as crianças da plateia.

Já o tarzã de feira, a madame telepata, a mocinha voltaica são capazes de embasbacar os marmanjos da região. Evito os spoilers, mas adianto que até os mais espertos podem ser enganados.

Ilustração publicada em 1º de fevereiro - André Stefanini

Um público de caipirões, sem dúvida —quem se deixaria enganar pelas promessas de contato com parentes mortos entre um número de contorcionismo e uma gritaria de homem-monstro enjaulado em desespero?

Mas, quando sobe o nível social dos iludidos —e há lindos cenários de luxo art déco à espera de novos truques—, Guillermo del Toro vai abandonando seu estilo de realismo social meio delirante para entrar em cheio no mundo chique do filme noir.

Tantas lembranças cinematográficas naturalmente sugerem que "O Beco do Pesadelo", com personagens mestres em truque e ilusão, é sobretudo um filme sobre o cinema. O espetáculo, a mistificação, o espanto, produzem pouco mais que ruína, alcoolismo e amargura nos que se dedicam a entreter o público.

Mas esse público —que combina ignorantões do interior e milionários com vocação criminosa— não é outro senão o dos apoiadores de Donald Trump.

A aposta em enganar os imbecis se confunde com a possibilidade de ser também um imbecil. Pior: também os mais espertos, os que dominam a arte de manipular o próximo, cedem a tentações genuinamente diabólicas.

O gênio do mercado financeiro pode se dar bem, mas há chances de que termine na cadeia. O visionário empresarial tem seu dia de perder a peruca. A mentira, entretanto, está na base de tudo: consumo, celebridades, bolhas de investimento, bispos e caçadores de corruptos.

O circo tem diversos personagens. O tipo estudioso, que decora seu livro de capa preta —Bíblia, manual de astrologia, Milton Friedman, pouco importa. O carinha dos aparelhos técnicos e geringonças —espelhos, alçapões, Twitter, tanto faz. O mal-encarado do porrete e da pistola.

Faltou, no filme de Guillermo del Toro, o palhaço sinistro. Mas o Brasil já conhece bem o tipo.

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