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Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

Triste está Eros, Afrodite chora

Noutro livro sobre W. H. Auden, as palavras do poeta morto mudam nas vísceras dos vivos

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A polícia soviética pôs o poeta Joseph Brodsky à força num avião, no dia 4 de junho de 1972, e o despachou de Petrogrado para Viena. Preso várias vezes por parasitismo, vadiagem e "ilusões reformistas paranoides", ele se recusava a deixar a União Soviética. Posto para fora, nunca voltou.

Dois dias depois, Brodsky viu um senhor de camisa vermelha e suspensórios largos, com o paletó e livros debaixo do braço, subir uma ladeira no vilarejo de Kirchstetten. Fora até lá, no norte da Áustria, para conhecer aquele inglês de inacreditáveis rugas verticais.

"Impossível!" reagiu o sexagenário ao se deparar com o poeta que batalhara para ver publicado em inglês. Convidou-o a entrar no bangalô onde passava o verão, a única posse que teve na vida. Para o russo, não se tratava apenas de agradecer.

Em Nova York, cinco anos depois, Brodsky comprou uma Lettera 22 numa loja na 6ª Avenida. Resolvera abandonar o idioma materno e precisava de uma máquina de escrever com teclado ocidental. Não adotou o inglês porque queria se adaptar ao exílio. Havia mais.

Num ensaio, explicou: "Meu único propósito então, como agora, era estar mais próximo do homem que considero a maior inteligência do século 20: Wystan Hugh Auden".

Não foi a primeira nem a penúltima vez que Auden despertou devoção apaixonada. Agora mesmo, saiu "Early Auden, Later Auden: A Critical Biography" (Princeton University Press, 895 págs.), ensaio crítico e biográfico no qual Edward Mendelson reúne e expande dois livros anteriores, tidos por definitivos.

Mendelson editou os poemas completos de Auden (926 págs.) e está no sexto volume da sua prosa (5.536 págs. no total). Vale o que poeta escreveu na sua elegia para W. B. Yeats: "As palavras do morto mudam nas vísceras dos vivos".

Nascido na Inglaterra, formado em Oxford e naturalizado americano, Auden morreu em 1973. Não passa ano sem que saia um livro ou tese a seu respeito. É sinal que, no mundo anglo-americano, há dezenas de departamentos de letras e centenas de estudantes em busca de assunto.

Não é só isso, contudo. Auden atrai leitores, universitários ou não, porque fala de modo objetivo daquilo que diz respeito a todos nós e a cada um em especial —desde que se entenda por "nós" a classe média ocidental.

A dialética da sociedade e do indivíduo está no cerne de seu poema mais longo, "A Era da Angústia", de 1947. O Narrador abre a écloga barroca: "Quando a necessidade é associada ao horror e a liberdade à chatice, é uma boa hora para abrir um bar". É num bar que estão três homens e uma mulher.

É tempo de guerra e o rádio "os compele a prestar atenção ao mundo que compartilham, de enormes massacres e tristezas imensas". O anúncio de ataques aéreos os tira do isolamento solitário. Cada um deles encarna uma faculdade: Intuição, Pensamento, Sentimento e Sensibilidade.

Malin, o Pensamento, fala dos "velhos tratamentos para tedium vitae: religião, política, amor". Ele bebe e, de manhã, retoma seus afazeres "no dia claro de trabalho e guerra". Volta a seus aborrecidos deveres num "mundo onde o tempo é real e no qual a poesia não pode ter interesse".

A poesia não faz nada acontecer: flui para o sul, cruza cidades cruas nas quais cremos e morremos, sobrevive, é um jeito de acontecer. Em dores de cabeça e aflições vagamente a vida escoa. Mesmo o mais horroroso martírio precisa seguir seu curso.

Auden engajou-se na juventude e foi à Espanha ajudar os republicanos na Guerra Civil. Como Brecht, preferia o coloquial ao empolado, duvidar a desvelar verdades graníticas. Foi à Islândia, à China, estabeleceu-se em Nova York e voltou a Oxford na velhice. Seus dons sobreviveram a tudo.

Com o tempo, tomou horror à retórica manipulativa da esquerda stalinista. Recorreu às formas do verso inglês, que dominava como ninguém, para criticar o que fizera antes, pensar contra si mesmo. Inventou uma poesia antirromântica que combinava razão, sexo, compaixão, amor.

Como ele mesmo disse, em prosa: "A preliminar necessária em qualquer atividade humana, seja ela a descoberta científica ou a visão artística, é a intensidade da atenção, ou, sendo menos pomposo, o amor".

O Ego tinha um lugar subordinado tanto na paixão como na política: "Se o afeto igual é impossível, que seja eu o que ama mais"; "Como disse Lênin: passe fome, trabalhe na clandestinidade, seja anônimo".

Quando Freud morreu, Auden escreveu que uma

"voz racional se calou. Triste

está Eros, criador de cidades,

chora a anárquica Afrodite".

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