Siga a folha

PerifaConnection, uma plataforma de disputa de narrativa das periferias. Feita por Raull Santiago, Wesley Teixeira, Salvino Oliveira, Jefferson Barbosa e Thuane Nascimento

Há um Delegado Chico Palha em cada esquina

Repressão da cultura negra é marca do Brasil ao longo da história desde o período colonial

Assinantes podem enviar 5 artigos por dia com acesso livre

ASSINE ou FAÇA LOGIN

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

Pâmela Carvalho

É moradora do Parque União, na Maré, onde coordena o Eixo de Arte, Cultura, Memórias e Identidades da Redes da Maré. É mestra em educação pela UFRJ, historiadora e pesquisadora ativista dos direitos de populações negras e de favelas

"Delegado chico palha

Sem alma, sem coração

Não quer samba nem curimba

Na sua jurisdição

Ele não prendia

Só batia"

A canção composta por Tio Helio e Nilton Campolino em 1938 e nacionalmente conhecida na voz de Zeca Pagodinho parece falar de um caso isolado e imaginário. Um delegado violento que reprimia as atividades culturais e religiosas na região em que atuava. Porém, o causo pode ajudar a refletir criticamente sobre nossa sociedade e suas políticas de segurança pública e cultura.

A presença e participação social da população negra sempre foi alvo de preocupação e repressão no Brasil. Desde o período colonial, passando pelo Brasil Império e chegando à República. Com a abolição da escravidão e, posteriormente, a proclamação da República, não era possível criminalizar legalmente a existência de pessoas negras.

Com o título "a polícia interrompeu o samba", notícia no jornal Correio da Manhã de agosto de 1920 aborda prisão de batuqueiros e apreensão de pandeiros - Reprodução/Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional

Então, o processo de criminalizar as práticas epistemológicas e culturais dessa população se intensifica. Se não se pode eliminar a existência do sujeito negro, tenta-se eliminar tudo aquilo que o constitui enquanto subjetividade e identidade.

Ao fim do século 19, o processo de demolição de cortiços seguido pelas conhecidas reformas de Pereira Passos mostram o desejo de construir uma nova metrópole no Rio de Janeiro. Porém o que se lê nas entrelinhas é um processo de exclusão de pessoas negras e pobres e a tentativa de limpeza estética e cultural.

Em 1890, já com o fim do regime legal de escravidão, é estabelecido o crime de vadiagem, que previa que aqueles que estivessem nas ruas sem estar comprovadamente trabalhando poderiam ser levados à delegacia.

A capoeira, outra prática cultural negra, também não foi perdoada pela legislação racista. O Código Penal de 1890 versava: "Fazer nas ruas e praças públicas exercício de agilidade e destreza corporal conhecido pela denominação de capoeiragem: pena de prisão celular por dois a seis meses".

Diversos foram os sambistas, capoeiristas, religiosos ou simplesmente amantes das práticas culturais negras que sofreram perseguição pelo Estado.

No início dos anos 1920, o sambista João da Baiana, um dos mais reconhecidos nomes do gênero, foi abordado diversas vezes por policiais por estar com um pandeiro na mão. Em um destes momentos, o agente policial apreendeu o pandeiro, levado como prova da vadiagem de João.

A atmosfera de uma repressão que passeava entre a lei e o racismo intrínseco nas relações sociais cria a figura dos "delegados Chico Palha". Um homem criado alegoricamente para representar um sem fim de agentes de coerção que se valem dos mecanismos de poder para violar ainda mais direitos e pessoas: "Ele não prendia, só batia".

O uso irônico e ambíguo do advérbio "só" revela ainda mais o não cumprimento da lei por aquele que deveria ser o portador dela. Ao mesmo tempo, apresenta um jargão muito utilizado por figuras policiais que são flagradas violentando cidadãos. Desvela também um ódio de raça e classe que se materializa na violência física.

Em depoimento para o documentário "Samba: 100 anos" (2016), Monarco, um dos baluartes do samba brasileiro afirma que: "O samba foi muito marginalizado, as escolas de samba foram muito invadidas, a polícia dissolvia, batia (...) um tal de Chico Palha, em Madureira, ele perseguia o sambista, não é? Batia, compreendeu?"

Um movimento muito semelhante e mais atual foi a proibição de bailes funk no Rio de Janeiro, cujo auge ocorreu com a política das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) entre 2010 e 2013. Outro marco foi a proposta veiculada em 2008 pelo ex-deputado estadual Álvaro Lins (MDB) e que estabelecia um conjunto de exigências para a realização dos eventos. Requisitos quase inatingíveis por produtores culturais negros e favelados.

As políticas de contenção violenta das culturas negras também têm expressão em outros estados como São Paulo. Em dezembro de 2019, nove jovens morreram durante uma operação da Polícia Militar em um fluxo (baile funk) em Paraisópolis.

A canção conhecida na voz de Zeca Pagodinho, presente nos churrascos, festas e quintais de muitas famílias das periferias brasileiras, torna quase que palpável a figura do delegado. E ela é tão verossímil porque, de certa forma, simboliza um padrão moral de muitos brasileiros e brasileiras médios com acesso a micropoderes. Expõe a imposição feita na marra, na força e na opressão. Há um delegado Chico Palha em cada esquina.

O samba termina com uma estrofe emblemática:

"A curimba ganhou terreiro

O samba ganhou escola

Ele expulso da polícia

Vivia pedindo esmola"

Mais do que processos de institucionalização, o terreiro, enquanto espaço físico, e a escola representam a capacidade organizativa das populações negras, apesar de uma estrutura repressiva em seu entorno.

Além de legitimamente continuar ocupando as ruas como espaço de fruição e de direito, as práticas culturais e epistemológicas negras têm se fortalecido ao longo da história e no causo narrado por Tio Helio e Nilton Campolino também. Enquanto isso, o delegado ficou à míngua, pelo menos na letra da canção.

Escola e terreiro existem apesar dos delegados Chico Palha que encontramos por aí. O samba e as demais expressões negras também.

A história "Lá da Serrinha" como narra Zeca Pagodinho em uma das gravações da canção vai muito além do morro da zona norte carioca. Ela expõe políticas históricas de cercear e controlar manifestações populares negras. Revela relações reais e sentidas de racismo, micropoderes e processos de esquiva e investida física e simbólica por parte de populações negras ao longo da história da cultura brasileira.

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas