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Vinho por metade do preço pode ser produto de crime, alertam especialistas

Receita Federal apreendeu 585.239 garrafas em 2021; bebida pode chegar estragada ao consumidor

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São Paulo

"Esse vinho tem gosto de sangue", comentou Luciano Stremel Barros em sua palestra no Rio Wine and Food Festival, no fim de agosto. Enófilo, sommelier formado e presidente da Associação Brasileira de Winemakers, o economista não se referia ao aroma animal comum —e apreciado— em alguns vinhos.

Falava, isto sim, do comércio ilegal da bebida na fronteira do Brasil com a Argentina e das mortes ligadas a ele.

Taças de vinho; bebida é alvo golpes online e de crime de descaminho - Rafael Roncato/Folhapress

Em sua apresentação, Barros abordou o problema das garrafas que chegam ao consumidor brasileiro via plataformas de comércio digital e redes sociais —e em especial nos grupos de WhatsApp—, por metade do preço daquelas importadas legalmente.

Presidente do Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social das Fronteiras (Idesf), instituição privada sem fins lucrativos com sede em Foz do Iguaçu (PR), Barros acompanha os números das atividades ilegais na tríplice fronteira há mais de 20 anos.

Ele conta que, nos últimos dois anos, houve um crescimento que considera espantoso da prática do crime de descaminho —não se trata de contrabando, outro tipo de crime que compreende trazer para o país um produto cuja importação é proibida.

"Sempre entrou vinho ilegal", diz. "Porém, nunca antes nesta proporção."

O crescimento vertiginoso no descaminho acompanhou a disparada no consumo de vinhos entre os brasileiros durante a pandemia. Em 2019, no Brasil inteiro foram apreendidas 87.575 garrafas pela Receita Federal.

Em 2020, esse número saltou para 280.044 e, em 2021, para 585.239. O ponto mais vulnerável para a entrada de vinhos é Dionísio Cerqueira (SC), onde há uma fronteira seca. Só ali, foram apreendidas 120.097 garrafas em 2021.

"São quadrilhas que antes atuavam em algum outro ramo, contrabando de cigarros, tráfico de armas ou de drogas, e viraram a chave porque o vinho ficou atraente", avalia Barros. "Para eles, não importa o produto, importa o lucro. São criminosos violentos."

As investigações mostram que a atuação acontece dos dois lados da fronteira. E que, em ambos, já há casos de assassinatos ligados à atividade.

"Ao mesmo tempo em que houve um aumento do consumo de vinhos, a pandemia criou restrições para que as pessoas cruzassem a fronteira e comprassem vinhos legalmente", diz o auditor fiscal Mark Tollemache, delegado da alfândega da Receita Federal em Dionísio Cerqueira.

"Nesse período, houve também um aumento dos e-commerce. Hoje o vinho irregular é distribuído principalmente por plataformas eletrônicas, onde é mais fácil se camuflarem, passarem por empresas idôneas. Há também a questão do câmbio paralelo na Argentina, que chega a pagar pelo dólar 50% a mais do que o oficial."

Tudo isso torna o crime muito atraente para o traficante, e faz seu produto chamar a atenção de quem busca uma boa oferta, mas não faz ideia de que pode estar financiando o crime. Em certos e-commerce de vinhos e marketplaces, não é difícil encontrar vinhos renomados pela metade do preço ou até menos.

No entanto, alguns marketplaces digitais, como o Magazine Luiza, criaram uma série de regras para evitar que itens ilegais sejam comercializados na sua plataforma.

"Muitos consumidores já estão com a pulga atrás da orelha", diz Sérgio Queiroz, sócio do grupo Baco Multimídia, que organiza o Rio Wine and Food Festival. "Mas, como a questão não tinha ainda sido muito falada, ia passando. Na dúvida, muitos continuam comprando."

O consumidor precisa saber também que, quando o vinho é muito barato, há grandes chances de, além de metaforicamente ter "sabor de sangue", ser um produto de fato estragado. A garrafa viaja e pode ficar armazenada nas piores condições: debaixo de sol, junto de agrotóxicos, no fundo de galinheiros.

"Você paga R$ 100 num vinho que custa R$ 300, mas acaba tomando um que vale R$ 20", diz Ciro Lilla, proprietário da Mistral, importadora oficial dos vinhos da Bodega Catena Zapata, um dos principais alvos dos criminosos.

Os vinhos da Catena são tão visados que Lilla criou um selo holográfico da Mistral para identificar as garrafas legais.

"Todos os [vinhos] argentinos, daqui para a frente, vão levar esse selo. As pessoas tomam o vinho estragado que compraram de uma fonte não confiável e depois ligam aqui reclamando que não estava bom. A gente dizia para olhar o contrarrótulo. Se estivesse em espanhol, era descaminho. Agora já tem quadrilhas falsificando o contrarrótulo."

Os crimes em torno do vinho incluem também falsificação e roubo de carga. No dia 23 de agosto, três homens foram presos na Grande São Paulo por colocar rótulos de Chandon em garrafas de um espumante mais barato.

Seis dias depois, um container de vinhos da Bodega Rutini, que subia do porto de Santos para o centro de distribuição da importadora Zahil, em São Paulo, foi roubado.

Há, ainda, os golpes na internet, que não são exclusivos do vinho, mas que acontecem também em torno dele. O mais comum é o que tenta conseguir acesso ao número do WhatsApp para pedir dinheiro aos contatos da vítima.

Já no Instagram, os golpistas primeiro detectam quem se interessa por vinho. Usando um perfil falso de uma vinícola, importadora ou loja de vinhos, mandam uma mensagem dizendo que o usuário foi sorteado, e que ganhou umas tantas garrafas de vinhos.

Para ter direito a elas, bastaria mandar nome completo, data de nascimento e telefone. Ao fazê-lo, os criminosos então enviam uma mensagem pedindo que o "ganhador" digite um número.

Acontece que o número em questão é um código de autorização para mudar o número de telefone vinculado à sua conta de WhatsApp. "Desconfiar sempre é a melhor forma de se proteger", diz Thiago Chinellato, delegado de polícia da Divisão de Crimes Cibernéticos do DEIC.

"Desconfie especialmente quando a vantagem é muito grande"


Como se proteger

  • Quando o preço de um vinho na internet for muito inferior à média, desconfie. Não precisa abandonar a oferta de cara, mas redobre a atenção.
  • Na internet, procure comprar de empresas conhecidas. Veja se o site traz informações como endereço, telefone e CNPJ. Jogue estes dados e o nome da loja em uma busca na internet e avalie o que aparece.
  • Nos marketplaces, busque informações sobre quem está fazendo a venda e faça toda a checagem em cima deste nome.
  • Dê preferência a sites e plataformas com endereço físico e fiscal, no Brasil. Em caso de algum problema, a polícia e a justiça brasileira só podem atuar em território nacional.
  • Cuidado com os grupos de venda de vinhos no WhatsApp. Não acredite que foi mesmo o primo do administrador do grupo que trouxe os vinhos na mala "com o maior cuidado".
  • Quando a garrafa chegar na sua casa, olhe o contrarrótulo e verifique se ele está em português, se tem registro no MAPA, e se traz o nome da importadora.

Os descaminhos do líquido

O que os maus tratos podem fazer com o seu vinho

Calor

Os vinhos trazidos ilegalmente costumam passar dias armazenados, ou viajando por locais muito quentes. Um barracão de zinco não climatizado pode chegar a mais de 50ºC, o que literalmente cozinha os aromas e acaba com a acidez.

Garrafas de vinho em vinícola de Espírito Santo do Pinhal (SP) - Divulgação

Frio

Nos seus descaminhos, o vinho que vem de Mendoza passa por regiões geladas. Embora menos prejudicial que o calor, o frio contrai a rolha e pode, com isso, propiciar a entrada de ar. Nesse caso, o vinho começa a se oxidar e desenvolver aromas indesejáveis.

Luz

Não é raro o vinho desencaminhado ficar no sol o dia inteiro. A maior parte das garrafas de vinho são escuras para proteger o líquido da luz, mas os raios ultravioleta podem atravessar até mesmo as garrafas mais escuras. Esses raios provocam a reação das vitaminas do complexo B com os aminoácidos, substâncias que fazem parte do vinho. A reação gera aromas muitas vezes sulfurosos.

Trepidação

O descaminho muitas vezes passa por estradas de terra, o que faz com que o vinho chacoalhe. Todo esse movimento é capaz de induzir as mais diversas reações químicas.

Umidade

Ambientes úmidos demais favorecem a criação de fungos na rolha. Já os secos demais podem ressecá-la, o que provoca oxidação.

Contaminação cruzada

Nessas viagens, o vinho muitas vezes é escondido no galinheiro ou no estábulo, viaja em um caminhão fechado com agrotóxicos e outros produtos químicos. A rolha é porosa. Tanto os aromas quanto as substâncias tóxicas do ambiente podem penetrá-la.

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