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'Princípio de Karenina' é uma sucessão kitsch de clichês edificantes

Protagonista se agarra à xenofobia paterna em romance que entrelaça narrativa autobiográfica e comentário literário

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Princípio de Karenina

Avaliação: Regular
  • Preço: R$ 59,90 (200 págs.); R$ 34,90 (ebook)
  • Autoria: Afonso Cruz
  • Editora: Companhia das Letras

"Princípio de Karenina", romance do português Afonso Cruz, 51 anos, tem algumas peripécias de que convém poupar o leitor de conhecer para não dar spoiler. Com esse cuidado, vou mencionar apenas os dois planos gerais em que o romance se constrói. Ambos são igualmente importantes e se alternam equilibradamente ao longo do livro.

Um deles está centrado na narrativa das memórias de um narrador coxo, especialmente em torno da sua infância, mas não apenas, pois avança por saltos até o presente da narração em que ele já é um senhor maduro.

Nessa narrativa autobiográfica ganha destaque a presença conservadora e autoritária do pai, cujo traço mais marcante é o horror a tudo o que é estrangeiro, sendo a propriedade, o trabalho e a família, concebidos de maneira fortemente hierarquizada, o porto pacífico em que se defende do exógeno desconhecido.

Retrato do escritor e músico português Afonso Cruz - Divulgação

O garoto cresce assimilando os valores do pai, embora, diferentemente dele, tenha sobressaltos de consciência em que a xenofobia é desmascarada como pânico diante da realidade e da diversidade do mundo. Não são suficientes, contudo, para que deixe de seguir os passos do progenitor, herde a sua casa e rotina, casando-se com uma mulher local, e mal lhe dirigindo atenção e palavra.

Tudo isso muda quando uma refugiada vietnamita —pensada por ele à imagem midiática da garota nua a correr com o corpo atingido pelo napalm— emprega-se em sua casa. Eles se apaixonam e iniciam um caso que resulta numa inesperada gravidez. O rapaz pensa seriamente em deixar a mulher e viver com a empregada estrangeira, mas afinal, por diferentes desculpas e circunstâncias, não o faz.

O outro plano geral, que vai entremeado com o da memória, diz respeito aos comentários que o narrador faz em torno da manjadíssima abertura de "Anna Kariênina", de Tolstói, segundo a qual "todas as famílias felizes são parecidas entre si" enquanto "as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira".

Desde criança, o narrador tem uma intuição contrária à do escritor russo, baseada inicialmente numa intuição, digamos, teológica de que "todos serão salvos". Depois, com a experiência, vai encontrando mais argumentos para se contrapor a ela, até postular que, ao contrário, diferenças e deformidades, como a que acometera o seu pé, são decisivas na felicidade. Como legado à filha da mulher amada, com quem não teve coragem de conviver, deixa então a mensagem de ficar grata pelas imperfeições e de jamais abdicar de tê-las.

Neste ponto, Afonso Cruz está curiosamente perto de outro português lido no Brasil, Valter Hugo Mãe. Em "A Máquina de Fazer Espanhóis", também pretende comentar a criação de um grande autor, Fernando Pessoa, em sentido diverso do sustentado pelo original. O Esteves sem metafísica, do poema "Tabacaria", deixa de ser um homem que simplesmente vive, para ser alguém que, agora, reivindica profundidade para a sua existência.

Os dois planos do romance de Cruz são costurados –para usar um termo relevante na sua memória da mãe amorosa, costurando ao lado de outras mulheres silenciosas da aldeia— por um registro grave, repleto de pensamentos, sentenças e máximas.

Se fosse citá-los, preencheria o espaço do caderno inteiro e não só o reservado à minha resenha. Para não ser avaro, contudo, registro apenas um exemplo, mas definitivo, ao resumir a conclusão a que chega o narrador: "A felicidade é um estado especial que só pode existir se incluir no seu seio uma certa dose de infelicidade, por muito paradoxal que possa parecer".

Caso o leitor se tenha comovido, peço que suspenda a leitura, pois o que vem a seguir certamente o desapontará.

A articulação entre narrativa autobiográfica e comentário literário se faz, portanto, por uma sucessão de clichês edificantes e floreios kitsch, que, ademais, são aplicados de maneira flagrantemente inconsistente. Isto porque o que a memória ressalta é o efeito destrutivo de uma formação patriarcal e xenofóbica, enquanto a conclusão a que chega é inatamente essencialista.

A medida da felicidade proposta pelo narrador nada tem a ver com a formação e sim com um tipo de caráter peculiar, que uns têm e outros não, por mais que ao longo da vida se alimente de um vasto repasto de literatice filosofante. A primeira frase do romance ("Eu seria muito infeliz num mundo feliz. Ela seria feliz em qualquer mundo") poderia ser também a última, uma vez que a experiência ressoa no vazio das grandes frases ocas.

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