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Carolina Silva Pedroso e Stephanie Braun Clemente

Como Venezuela mudou de Chávez a Maduro até crise atual

Transformações e impasses desde o início do chavismo desafiam política externa brasileira

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Carolina Silva Pedroso

Professora de Relações Internacionais da Unifesp

Stephanie Braun Clemente

Pesquisadora de relações internacionais da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

[RESUMO] Nos últimos 25 anos, desde que Hugo Chávez assumiu o poder, a Venezuela passou por um turbilhão de transformações políticas, econômicas e sociais que levaram ao mais recente capítulo de crise democrática e humanitária. Conjuntura complexa exige da diplomacia brasileira calma, pragmatismo e capacidade de conciliação em um ambiente altamente desfavorável.

A Revolução Bolivariana completou 25 anos na Venezuela e é salutar considerar as dinâmicas que ocorreram para melhor compreender os rumos desse processo.

Como primeiro exercício, nos urge esclarecer as principais diferenças entre Hugo Chávez, que governou o país de 1999 a 2013, e Nicolás Maduro, no poder desde então. Por mais que o atual líder venezuelano seja o herdeiro político do chavismo, é errôneo considerar que se trata de um projeto linear e homogêneo.

Ao olhar para o ambiente doméstico, é inegável o impacto das chamadas "misiones bolivarianas": uma série de programas sociais nas áreas de saúde, educação, alimentação, entre outras. Elas foram responsáveis por uma expressiva redução da pobreza, trazendo progresso social às classes menos favorecidas economicamente. O sucesso inicial, fortemente ligado à bonança petroleira dos anos 2000, garantiu altos índices de popularidade a Chávez.

Cidadão venezuelano segura bonecos representando Nicolás Maduro (com a bandeira), atual presidente, e Hugo Chávez, ex-ocupante do posto, durante marcha em apoio aos resultados das eleições presidenciais em Caracas, em 7 de agosto - AFP

Com a liderança de Maduro, o Estado venezuelano sucumbiu frente à queda dos preços internacionais do petróleo. O valor da commodity decaiu pela metade entre 2013 e 2015, e a produção interna, já debilitada, levou o país a sentir os sintomas mais agudos da alta dependência petroleira: escassez de produtos básicos para a subsistência, crise no setor elétrico, alta inflação e queda do Produto Interno Bruto (PIB).

Tal fenômeno, chamado de Doença Holandesa, corrói a capacidade produtiva de países que possuem recursos naturais abundantes. No que se refere à Venezuela, os efeitos são ainda mais dramáticos pela vinculação do orçamento público à estimativa do preço do petróleo no mercado internacional.

Além disso, a desarticulação do setor privado promovida por Chávez aumentou a urgência material e fez com que seu sucessor reduzisse o grau de implementação das "misiones". O regime venezuelano passou a priorizar o modelo de organizações locais com foco produtivo, as chamadas comunas, que se disseminaram pelo país, lideradas pelos círculos bolivarianos.

Não bastasse o cenário econômico adverso, em parte por questões estruturais anteriores ao chavismo, mas também como consequência de ações de seu governo, houve um aprofundamento da polarização política interna.

No governo Chávez, a oposição tentou um golpe de Estado em 2002 e boicotou as eleições parlamentares. O então líder venezuelano reagiu radicalizando-se e, com amplo apoio popular, consolidou sua hegemonia política nos distintos Poderes constitucionais.

Já ao final do período chavista, a oposição e suas novas lideranças ampliaram sua base eleitoral. Em 2013, quase venceram Maduro. Este foi também o primeiro pleito da Revolução Bolivariana não chancelado pelo Carter Center, uma das principais organizações internacionais independentes de observação de eleições.

Com a premência de se legitimar interna e externamente, Maduro fortaleceu os coletivos e militarizou ainda mais o governo, aspecto crucial para os desdobramentos posteriores: escalada de violência, repressão e a maior crise migratória da história do país.

Em termos de política externa, o objetivo de libertar a Venezuela e seus vizinhos da submissão aos Estados Unidos perpassa os dois períodos, com base nos preceitos bolivarianos de contestação ao imperialismo, capitalismo e neoliberalismo.

Com a chegada do chavismo ao poder, o afastamento dos norte-americanos deu-se muito mais no âmbito diplomático que nos negócios, que seguiram fluindo tão e até mais intensamente do que antes. Essa tendência conflituosa acentuou-se com Maduro e abriu precedentes para atingir o centro nevrálgico dessa relação: o comércio petroleiro.

Ou seja, com Chávez os conflitos externos nunca chegaram a abalar a principal fonte de renda do país. Com Maduro, a economia venezuelana alcançou a marca de mais de 900 restrições econômicas, comerciais e financeiras. Justificadas pela intensificação da migração, do conflito interno e de denúncias de violações sistemáticas aos direitos humanos, as sanções também refletem a própria mutação do ambiente geopolítico internacional.

O posicionamento da Venezuela coincide com o adensamento das tensões geopolíticas entre o eixo Ocidental (Estados Unidos - União Europeia) e o Oriental (Rússia – China). Outros aliados importantes da Revolução Bolivariana são atores envolvidos em tal disputa, que iniciaram a parceria antes da ascensão de Maduro e se tornaram mais estratégicos diante das sufocantes restrições que recaem sobre a economia venezuelana.

O Irã, por exemplo, tem sido fundamental ao país como forma de driblar as sanções petroleiras advindas da era Trump e reforçadas por Biden. Já a Turquia e sua tradicional indústria de ourivesaria firmaram uma sólida parceria comercial com o setor de mineração.

A exploração do arco mineiro da terceira maior bacia hidrográfica do continente, o rio Orinoco, tem garantido um fôlego material ao regime de Maduro, engendrando críticas quanto ao caráter extrativista, violento e poluidor do garimpo em terras indígenas.

Da mesma forma que alianças ideológicas e estratégicas ajudam a sustentar a Revolução Bolivariana, a oposição também tem apoio externo. María Corina Machado, que há décadas tem um significativo trânsito junto ao Partido Republicano e também a figuras mais conservadoras do Partido Democrata dos Estados Unidos, chegou a pedir intervenção militar estrangeira como solução para a crise política.

A desconfiança do regime em relação a ela tem fundamento: Corina Machado foi uma das peças fundamentais para o golpe de Estado contra Chávez, em 2002. Portanto, a decisão de torná-la inelegível por 15 anos deve ser lida não somente como fruto de uma ação arbitrária. Trata-se de uma contenção daquilo que é considerado o maior risco para o atual governo venezuelano: a intervenção direta dos Estados Unidos sobre suas reservas de petróleo.

O governo estadunidense já tem a seu dispor a Citgo, subsidiária da estatal petroleira venezuelana PDVSA nos EUA, cujos acionistas foram trocados pelo oposicionista Juan Guaidó em 2019, quando ele presidia a Assembleia Nacional da Venezuela.

O respaldo russo e chinês à Venezuela serve como ferramenta de dissuasão a qualquer ameaça beligerante por parte de Washington. Internamente, o xadrez é tão complexo quanto, com a Plataforma Unitária Democrática representando um projeto político antagônico ao bolivarianismo. Não parece haver disposição espontânea para o convívio pacífico quando a aliança opositora busca retomar os preceitos neoliberais na economia e privatizar o funcionalismo público e a indústria petroleira.

As mutações na política doméstica e nos arranjos geopolíticos impulsionaram as administrações de Maduro a adaptar o modus operandi da Era Chávez. A crise política se agravou consideravelmente ao longo dos últimos 25 anos, com o acirramento do conflito entre grupos com visões mutuamente excludentes. Esse cenário de mudanças é determinante para o entendimento das dificuldades com as quais o Brasil precisa lidar.

A Venezuela é o epicentro de uma complexa crise humanitária, que impactou diretamente toda a vizinhança. A vinda dos imigrantes venezuelanos e as denúncias de violações de direitos humanos em fóruns internacionais tornam o relacionamento bilateral ainda mais delicado.

Nesse sentido, dois aspectos devem ser salientados. Em primeiro lugar, a Venezuela reforçou os vínculos com potências que rivalizam com o Ocidente, ao passo que a diplomacia brasileira estabelece boas relações com ambos os lados. Isso exige do Brasil seguir as diretrizes de sua política externa, que preza pela solução pacífica de controvérsias e não ingerência em assuntos domésticos, considerando também os jogos de poder global que influenciam no certame venezuelano.

Outro elemento complicador é a polarização política interna sobre o que a Revolução Bolivariana representa, com associações simplistas de que todo governo de esquerda reproduziria os mesmos resultados da Venezuela. Essa narrativa foi usada contra os governos do PT, em especial no contexto de disputa política com o bolsonarismo.

No polo oposto, ações autoritárias do regime de Maduro são subestimadas por parte da esquerda brasileira, o que complica ainda mais a posição do governo de Lula, que tem em sua base aliada visões tanto favoráveis quanto críticas ao regime.

Em 2024, a pauta do relacionamento com a Venezuela está em destaque graças ao imbróglio eleitoral. O Brasil tenta se mover com a cautela que a situação exige e de acordo com seu histórico diplomático de mediador de conflitos.

Qualquer postura que o país opte por adotar deve levar em consideração não apenas os fatores da democracia e dos direitos humanos, apelos legítimos da opinião pública, mas todos os demais vetores que atravancam a resolução do atual cenário político.

Dado o nível de polarização política da Venezuela, será necessária mediação externa. De acordo com comunicado conjunto, Brasil, Colômbia e México propuseram assumir a frente nas negociações, mas o presidente mexicano suspendeu, dias depois, a participação de seu país, até que o TSJ (Tribunal Supremo de Justiça) da Venezuela se manifeste sobre o resultado do pleito.

Para além disso, em recente manifestação pública, Celso Amorim, assessor especial da Presidência para assuntos internacionais, demonstrou reconhecer a dificuldade de efetivar uma solução rápida, já que está no horizonte o temor de um eventual conflito armado.

Se, no limite, o Brasil vislumbra que a deterioração mais avançada do Estado de Direito na Venezuela pode gerar um cenário ainda pior do que aquele que está posto, qual a saída possível? A dificuldade de encontrar soluções viáveis pode explicar a questionável proposta por uma "nova eleição", que se contrapõe à tradição diplomática de não ingerência e que não agrada a nenhum lado do conflito.

Para além disso, ainda não há garantias de que a realização de outra eleição ocorrerá da maneira pleiteada e que será considerada internacionalmente "válida".

Ademais, adotar uma das versões, a de Maduro ou da oposição, como correta implica comprometer a postura de negociador em favor de um lado que pode estar manipulando os fatos a seu favor. Que tipo de negociação é possível em um quadro de cisão tão profunda e quando o ritmo dos acontecimentos não parece compatível com a velocidade das respostas diplomáticas?

A conjuntura exige da diplomacia brasileira calma, pragmatismo e capacidade de conciliação em um ambiente altamente desfavorável.

Em resumo, o problema que a Venezuela enfrenta e representa é muito mais complexo do que a nossa vã polarização faz supor. Afinal, a Revolução Bolivariana segue em mutação, influenciada por suas próprias e truncadas dinâmicas políticas domésticas e internacionais.

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