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Descrição de chapéu The New York Times

Como o Irã ocultou durante dias que havia derrubado um avião

Líder supremo interveio somente 72 horas após queda e ordenou que governo reconhecesse erro

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Farnaz Fassihi
The New York Times

Quando o oficial da Guarda Revolucionária do Irã viu o que pensou ser uma aeronave não identificada perto do aeroporto internacional de Teerã, ele teve segundos para decidir se acionaria o gatilho.

O Irã tinha acabado de disparar uma enxurrada de mísseis balísticos contra forças americanas, o país estava em alerta máximo para um contra-ataque americano, e os militares iranianos alertavam sobre a chegada de mísseis de cruzeiro.

O militar tentou falar com o centro de comando para obter autorização para disparar, mas não conseguiu. Então ele disparou um míssil antiaéreo. E depois outro.

O avião, que era um jato comercial ucraniano com 176 pessoas a bordo, caiu e explodiu em uma bola de fogo.

Equipes de resgate próximas a destroços do avião ucraniano derrubado logo após decolar em Teerã - Akbar Tavakoli - 8.jan.20/AFP

Em questão de minutos, os principais comandantes da guarda perceberam o que haviam feito. E naquele momento começaram a ocultá-lo.

Durante dias, eles se recusaram a contar a verdade até para o presidente Hassan Rouhani, cujo governo negou publicamente que o avião tivesse sido derrubado. 

Quando eles finalmente lhe disseram, Rouhani lhes deu um ultimato para explicarem tudo ou ele se demitiria.

Somente então, 72 horas após a queda do avião, o líder supremo do Irã, aiatolá Ali Khamenei, interveio e ordenou que o governo reconhecesse seu erro fatal.

O New York Times montou a cronologia desses três dias, entrevistando diplomatas iranianos, atuais e ex-funcionários do governo, membros graduados da Guarda Revolucionária e pessoas próximas ao círculo interno do líder supremo e examinando declarações públicas oficiais e relatos da mídia estatal.

TERÇA-FEIRA, 7/1

Por volta das 0h, enquanto o Irã se preparava para lançar um ataque de míssil balístico a postos militares dos EUA no Iraque, membros da Guarda mobilizaram unidades móveis de defesa antiaérea em uma área militar sensível, próxima do aeroporto Imã Khomeini, em Teerã.

O Irã estava prestes a retaliar pelo ataque de drones americanos que matou o principal comandante militar iraniano, general Qassim Suleimani, em Bagdá, cinco dias antes, e os militares se preparavam para um contra-ataque americano. As Forças Armadas estavam "em guerra", o nível máximo de alerta.

Mas, por um trágico erro de cálculo, o governo continuou permitindo que voos comerciais civis pousassem e decolassem do aeroporto de Teerã.

O general Amir Ali Hajizadeh, comandante da Força Aeroespacial da Guarda, disse mais tarde que suas unidades pediram às autoridades de Teerã que fechassem o espaço aéreo do Irã e suspendessem todos os voos, sem sucesso.

As autoridades iranianas temiam que o fechamento do aeroporto causasse pânico na população, porque significaria a iminência de uma guerra com os EUA, disseram membros da Guarda e outras autoridades ao Times. 

Elas também esperavam que a presença de jatos de passageiros pudesse agir como um empecilho contra um ataque americano ao aeroporto ou à base militar próxima, transformando efetivamente aviões carregados de viajantes inocentes em escudos humanos.

QUARTA-FEIRA, 8/1

Após o início do ataque de mísseis do Irã, o comando central de defesa aérea emitiu um alerta de que aviões de guerra americanos haviam decolado dos Emirados Árabes Unidos e que mísseis de cruzeiro seguiam em direção ao Irã.

O oficial do lançador de mísseis perto do aeroporto ouviu os avisos, mas não uma mensagem posterior de que o alarme sobre mísseis de cruzeiro era falso.

O alerta sobre aviões de guerra americanos também pode ter sido errado. Autoridades militares dos EUA disseram que nenhum avião americano estava no espaço aéreo iraniano ou perto dele naquela noite.

Quando o oficial avistou o jato ucraniano, pediu permissão para disparar. Mas não conseguiu se comunicar com seus comandantes porque a rede tinha sido interrompida ou bloqueada, disse Hajizadeh mais tarde.

O oficial, que não foi identificado publicamente, disparou dois mísseis, com menos de 30 segundos de intervalo.

Hajizadeh, que estava no oeste do Irã supervisionando o ataque aos americanos, recebeu um telefonema com a notícia.

"Liguei para as autoridades e lhes disse que isso havia acontecido e era possível que tivéssemos atingido nosso próprio avião", contou ele mais tarde em pronunciamento pela televisão.

Quando Hajizadeh chegou a Teerã, havia informado aos principais comandantes militares do país: major-general Abdolrahim Mousavi, comandante em chefe do exército, que também é o chefe do comando central de defesa aérea; major-general Mohammad Bagheri, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas; e major-general Hossein Salami, comandante em chefe da Guarda Revolucionária.

A Guarda, uma força de elite encarregada de defender o governo clerical do Irã no país e no exterior, é separada do Exército regular e responde apenas ao líder supremo. Nessa altura, os líderes de ambos os corpos militares sabiam a verdade.

Hajizadeh aconselhou os generais a não avisar as unidades de defesa aérea, temendo que isso prejudicasse sua capacidade de reagir rapidamente se os EUA atacassem.

"Foi pelo bem de nossa segurança nacional, porque nosso sistema de defesa aérea ficaria comprometido", afirmou Hajizadeh em entrevista à imprensa iraniana nesta semana. "Os subordinados suspeitariam de tudo."

Os líderes militares criaram um comitê de investigação secreto, formado pelas forças aeroespaciais da Guarda, pela defesa aérea do Exército e pela inteligência e especialistas cibernéticos. 

O comitê e os oficiais envolvidos no tiroteio foram isolados e receberam ordem para não falar com ninguém.

O comitê examinou dados do aeroporto, trajetória de voo, redes de radar e alertas e mensagens do operador de mísseis e do comando central. Testemunhas —o oficial que disparou os mísseis, seus supervisores e todos os envolvidos— foram interrogadas durante horas.

O grupo também investigou a possibilidade de que os EUA ou Israel tivessem invadido o sistema de defesa do Irã ou bloqueado as ondas de rádio.

Na quarta-feira à noite, o comitê havia concluído que o avião foi derrubado por erro humano.

"Não estávamos confiantes sobre o que aconteceu até quarta-feira, perto do anoitecer", disse depois Salami, comandante em chefe da Guarda, em um comunicado televisionado ao Parlamento. 

"Nossa equipe de investigação concluiu que o avião caiu por causa de erros humanos."

Khamenei foi informado. Mas eles ainda não informaram o presidente, outras autoridades eleitas ou o público.

Os comandantes graduados discutiram manter os disparos em segredo até que as caixas-pretas do avião —os dados do voo e os gravadores de voz da cabine— fossem examinadas e concluídas as investigações formais da aeronáutica, segundo membros da Guarda, diplomatas e oficiais com conhecimento das deliberações. 

Eles argumentaram que esse processo poderia levar meses e daria tempo para administrar as consequências internas e internacionais quando a verdade surgisse.

O governo tinha esmagado violentamente uma revolta popular em novembro. Mas o assassinato pelos americanos de Suleimani, seguido dos ataques contra os EUA, mudou a opinião pública. Os iranianos estavam galvanizados em um momento de unidade nacional.

 

As autoridades temiam que se admitissem ter abatido o avião de passageiros esse impulso diminuísse, provocando uma nova onda de protestos contra o governo.

"Eles defenderam encobrir isso porque achavam que o país não aguentaria mais crises", disse um membro da Guarda que, como outros entrevistados para este artigo, falou sob a condição do anonimato para comentar deliberações internas. 

"No final, salvaguardar a República Islâmica é nosso objetivo final, a qualquer custo."

Naquela noite, o porta-voz das Forças Armadas Conjuntas, brigadeiro-general Abolfazl Shekarchi, disse à imprensa iraniana que as sugestões de que os mísseis atingiram o avião eram "uma mentira absoluta".

QUINTA-FEIRA, 9/1

Investigadores ucranianos começaram a chegar a Teerã, e as autoridades ocidentais diziam publicamente que tinham evidências de que o Irã havia abatido acidentalmente o avião.

Um coro de altas autoridades iranianas —do diretor da aviação civil ao principal porta-voz do governo— emitiu declarações rejeitando as denúncias, e suas reivindicações eram ampliadas na mídia estatal.

A sugestão de que o Irã teria abatido um avião de passageiros era uma "conspiração ocidental", diziam eles, "guerra psicológica" com o objetivo de enfraquecer o Irã exatamente quando o país exercitava sua força militar contra os EUA.

Mas, em particular, funcionários do governo ficaram alarmados e questionaram se havia alguma verdade nas reivindicações ocidentais. Rouhani, um estrategista militar experiente, e seu chanceler, Javad Zarif, evitaram os telefonemas de líderes e ministros das Relações Exteriores mundiais em busca de respostas.

Ignorantes do que seus próprios militares haviam feito, eles não tinham nenhuma para dar.
Internamente, crescia a pressão pública para o governo enfrentar as denúncias.

Rouhani tentou várias vezes chamar comandantes militares, disseram autoridades, mas eles não retornaram suas ligações.

Membros de seu governo ligaram para seus contatos nas Forças Armadas e disseram que as acusações eram falsas. A agência de aviação civil do Irã chamou oficiais militares com resultados semelhantes.

"A quinta-feira foi frenética", disse Ali Rabiei, porta-voz do governo, mais tarde em entrevista coletiva.

"O governo fez ligações telefônicas consecutivas e entrou em contato com as Forças Armadas perguntando o que havia acontecido, e a resposta para todas as perguntas foi que nenhum míssil tinha sido disparado."

SEXTA-FEIRA, 10/1

Na manhã de sexta, Rabiei emitiu um comunicado dizendo que a alegação de que o Irã derrubou o avião era "uma grande mentira".

Várias horas depois, os principais comandantes militares do país convocaram uma reunião privada e contaram a verdade a Rouhani.

Rouhani ficou pálido, segundo oficiais próximos a ele. Ele exigiu que o Irã anunciasse imediatamente que havia cometido um erro trágico e aceitasse as consequências.

As autoridades militares recuaram, argumentando que as consequências poderiam desestabilizar o país. Rouhani ameaçou renunciar.

O Canadá, que tinha o maior número de cidadãos estrangeiros a bordo do avião, e os EUA, país de origem da Boeing, foram convidados a investigar o acidente e acabariam por revelar suas evidências, disse Rouhani. 

O dano à reputação do Irã e a confiança do público no governo criariam uma enorme crise no momento em que o país não podia suportar mais pressão.

À medida que o impasse aumentava, um membro do círculo interno de Khamenei que estava na reunião informava ao líder supremo. O aiatolá enviou uma mensagem de volta ao grupo, ordenando que o governo preparasse uma declaração pública admitindo o ocorrido.

Rouhani informou os fatos a alguns membros seniores de seu governo. Eles ficaram chocados.
Rabiei, o porta-voz do governo que havia negado tudo naquela manhã, não resistiu.

Abbas Abdi, um crítico proeminente do establishment religioso do Irã, disse que, quando falou com Rabiei naquela noite, Rabiei ficou perturbado e chorou.

"É tudo mentira", disse Rabiei, segundo Abdi. "A coisa toda é uma mentira. O que devo fazer? Minha honra se foi."

SÁBADO, 11/1

Às 7h, os militares divulgaram uma declaração admitindo que o Irã havia abatido o avião por "erro humano".

A revelação bombástica ainda não pôs fim à divisão interna do governo. A Guarda quer atribuir a culpa aos envolvidos no disparo dos mísseis e acabar com isso, disseram autoridades.

O operador de mísseis e até dez outros foram presos, mas as autoridades não os identificaram ou disseram se foram acusados.

Rouhani exigiu uma responsabilização mais ampla, incluindo uma investigação de toda a cadeia de comando.

A Guarda aceitar sua responsabilidade, afirmou ele, é "o primeiro passo e precisa ser completado com outros". Seu porta-voz e legisladores exigiram saber por que Rouhani não foi informado imediatamente.

Rouhani tocou nessa preocupação quando divulgou sua declaração uma hora e 15 minutos depois. 

A primeira linha dizia que ele havia descoberto a conclusão do comitê de investigação sobre a causa do acidente "algumas horas atrás".

Foi uma admissão impressionante, um reconhecimento de que até mesmo o mais alto funcionário eleito do país havia sido excluído da verdade e que, quando os iranianos e o mundo se voltavam para o governo em busca de respostas, eles espalharam mentiras.

"O que pensávamos ser notícia era mentira. O que pensávamos ser mentira era notícia", disse Hesamedin Ashna, principal consultor de Rouhani, no Twitter. "Por quê? Por quê? Cuidado com as ocultações e o regime militar."

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves 

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