Ciclocosmo

Um blog para quem ama bicicletas

Ciclocosmo - Caio Guatelli
Caio Guatelli

População se diz desrespeitada na revisão do Plano Diretor

Às vésperas da votação da lei, paulistanos relatam que tentativas de participação foram em vão

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Na tarde da última terça-feira (20), milhares de paulistanos caminharam até a Câmara Municipal de São Paulo para manifestar oposição ao PL 127, a revisão do Plano Diretor. Na ocasião, arquitetos, urbanistas, engenheiros, líderes de movimentos sociais e membros dos conselhos municipais levaram aos vereadores uma "carta de repúdio" ao novo texto da lei.

Com mais de uma centena de assinaturas, o documento foi entregue ao vereador Milton Leite (União), um dia depois da base governista ser forçada a rever regras que davam vantagens ao setor imobiliário em detrimento dos interesses sociais e da preservação ambiental.

Manifestantes empunham cartazes
Manifestantes mostram cartazes contra o PL 127, o Plano Diretor, na terça-feira (20), em frente à Câmara Municipal de São Paulo - Francisco Brito

Na quinta-feira (15) da semana anterior, durante a última audiência pública do PL 127, os manifestantes haviam sido recebidos pelo vereador Rubinho Nunes (União), presidente da Comissão de Política Urbana da Câmara de São Paulo. Apesar de abrir as portas da casa para ouvir a população, o vereador foi acusado de tratar os manifestantes com desprezo e discriminação.

"Fui desrespeitada", disse a arquitete Toni Zagato, que faz parte do Conselho Municipal de Política Urbana. Naquele dia, após ouvir diversos relatos que pediam a anulação do texto, o vereador chamou a vez de Zagato sem considerar a sua identidade de gênero: "senhor Antônio Zagato tem a palavra".

Alertado por Toni sobre seu gênero trans não binária, o vereador insistiu ao menos quatro vezes em tratar a arquitete como homem. "Eu sigo a gramática, está constando Antônio, portanto o verbo [sic] é masculino", disse Rubinho Nunes repetidamente.

Participante de audiência segura microfone
A arquitete Toni Zagato, que foi desrespeitada pelo vereador Rubinho Nunes (União) durante Audiência Pública da revisão do Plano Diretor - Rede Câmara SP

Zagato diz que o desrespeito continuou após a audiência, nas redes sociais do vereador, e comparou a situação ao modo como a administração pública tratou a população durante a fase de elaboração da nova lei. "Faltou escutar as pessoas e falar a língua que elas falam. Ao invés disso, impuseram uma linguagem hermética, de domínio de uma parcela muito pequena da população".

De acordo com Zagato, enquanto a elaboração do texto ainda estava com o executivo (entre 2020 e 2022), as reuniões dos conselhos não surtiam resultado. Ela diz que a Prefeitura dificultava a participação popular usando de artifícios técnicos, como a geração de múltiplos protocolos no SEI (Sistema Eletrônico de Informações), o que deixava o processo muito confuso. Zagato ainda indica que a plataforma de participação eletrônica, por videoconferência, impedia a participação da maior parte da população por falta de acesso à internet de banda larga.

A dificuldade em ser ouvido no processo de elaboração do Plano Diretor não é novidade, e já deixou muitos paulistanos desiludidos. O fotógrafo Paulo Preto, por exemplo, deixou a cidade após inúmeras tentativas frustradas de defender as características históricas do bairro Pompéia (zona oeste), onde foi criado. "Fiquei com a saúde mental muito abalada ao ver tudo aquilo indo embora, minhas memórias afetivas, muita gente vendendo suas casas e o bairro se transformando muito rapidamente".

Paulo Preto conta que tentou ser ouvido durante a elaboração do Plano Diretor de 2014, quando, junto a outros representantes de bairro, bateu nas portas dos então vereadores Nabil Bonduki, Floriano Pesaro e Aurélio Nomura. "A ideia era questionar esse processo de verticalização dos bairros e mostrar indícios de irregularidades".

Segundo o fotógrafo, o grupo era recebido, mas o debate com os vereadores não surtia resultados. "Depois disso tudo, a gente se reunia com o pessoal da Vila Mariana, de Pinheiros e de outras regiões e a conclusão que a gente chegava é que a maioria dos vereadores estava no bolso do Secovi-SP".

"Eu não gosto dessa ideia [de verticalização]. Eu acho que tem que preservar a memória, a história das pessoas, e isso tudo é o que eu vi ruir. O bairro vai ficando pior, intransitável, muito barulhento. Muda tudo e não se preserva nada", disse entristecido Paulo Preto.

Sem ter para onde ir, a líder comunitária Vera Lucia Vieira Veiga insiste na tentativa de chamar a atenção da Prefeitura para seu bairro, a comunidade Real Parque, na zona sul de São Paulo. A região faz parte de um conjunto de três territórios onde a gestão municipal tem a obrigação legal de investir os recursos oriundos da outorga onerosa (taxa cobrada de empresas para construir acima do limite) da Operação Urbana Consorciada Faria Lima —um desdobramento do Plano Diretor de 2014 que levantou mais de R$ 4 bilhões aos cofres do município.

Os moradores da comunidade Real Parque dizem esperar há quase uma década pela conclusão do projeto de reurbanização, onde estavam previstas as construções de HIS (Habitação de Interesse Popular) para 275 famílias, uma UBS (Unidade Básica de Saúde) e uma creche que atendesse toda a comunidade. "Nós vamos em todas as reuniões, mas até agora é só promessa. O terreno da creche foi invadido, a UBS que fizeram é muito pequena e não comporta as pessoas, os médicos fazem o atendimento numa barraca e a prefeitura não resolve".

"A gente se sente lesado, enganado, prejudicado, abandonado", disse a paulistana.

Foto de 2017 mostra terreno de 10 mil metros quadrados destinado desde 2014 a construção de UBS na comunidade Real Parque. Até hoje o terreno continua vazio, e a população reclama que os médicos atendem em barracas, do lado de fora de uma pequena UBS - Diego Padgurshi/Folhapress

Por nota, a Prefeitura indicou que "o Plano de Obras e Intervenções da OUCFL foi aprovado pelo Conselho Gestor sem prever a construção de equipamentos de saúde e educação. Para incluir no programa a construção desses equipamentos, é necessária a revisão da Lei, tramita na Câmara de São Paulo a possibilidade de construção por meio do PL 028/2022".

"A Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Municipal da Educação (SME), esclarece que não procede a informação de que o terreno citado pela reportagem está abandonado. Um Centro de Educação Infantil (CEI) será construído no local, que está em fase de licitação. Além deste, já há na região do Real Parque três unidades CEIs: o Recanto da Alegria I, o Recanto da Alegria II e o CEI Irene Gomes dos Santos; todos somando 27 vagas ainda disponíveis".

Sobre a elaboração do Plano Gestor, a Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento afirmou que "o Município realizou um processo participativo amplo, democrático e transparente para discutir os ajustes no Plano Diretor. Em 329 dias de Revisão no âmbito do Executivo, foram realizadas 91 atividades participativas, entre reuniões, oficinas, audiência públicas, consultas on-line e visitas distribuídas no território das 32 subprefeituras, que resultaram em mais de 12 mil contribuições"

A equipe de comunicação do vereador Rubinho Nunes enviou um comunicado dizendo que no processo de revisão do Plano Diretor foram realizadas mais de 50 audiências públicas, e que muitas das sugestões apresentadas pela população foram analisadas e consideradas pela Comissão de Política Urbana na elaboração do novo texto.

Ao se defender da acusação de preconceito, o vereador voltou a tratar a participante do debate pelo gênero masculino: "Em relação à reclamação de um munícipe por ter sido tratado pelo pronome masculino durante a audiência, é importante esclarecer que ele se identificou como Antonio quando se dirigiu à Câmara dos Vereadores".

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.