É Logo Ali

Para quem gosta de caminhar, trilhar, escalaminhar e bater perna por aí

É Logo Ali - Luiza Pastor
Luiza Pastor
Descrição de chapéu
sustentabilidade

Leve com você aquilo que o gato enterra

O que fazer com os dejetos orgânicos em sua próxima trilha

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Na véspera de iniciarmos a jornada rumo ao monte Roraima, o organizador da viagem, o empresário Magno Souza, da agência Roraima Adventures, reuniu o grupo para uma preleção sobre o que encontraríamos pelo caminho. Entre os perrengues específicos que viveríamos ao longo de 10 dias, um detalhe mereceu explicação minuciosa: o que, como e onde deveríamos descartar nossas fezes. A regra número um do parque Paraitepuy, na Venezuela, onde fica o monte, nos explicou, é "dali nada se leva e ali nada se deixa". Isso incluiria não só cristais e florzinhas (atenção, mochilas podem ser revistadas à saída),mas também nossos dejetos mais íntimos.

Barraca vertical adaptada para ser banheiro
Barraca adaptada para ser banheiro no parque Paraitepuy, no acesso ao monte Roraima - Roraima Adventures/Divulgação

Em meio a risadas nervosas da audiência, Souza nos apresentou ao que seria o "banheiro" improvisado para a viagem: uma tenda vertical, estreita e instável, que abrigaria um banquinho dobrável sobre o qual se encaixaria um assento de vaso sanitário de plástico. Entre a estrutura do banco e o assento, deveríamos colocar grossos sacos pretos nos quais faríamos nosso "número 2" com algum conforto. Terminada a obra, deveríamos jogar um punhado de cal sobre o conteúdo do saco –que em hipótese alguma deveria incluir nada líquido –, fechando-o com um nó e deixando-o do lado de fora da barraca. Um carregador era contratado para levar diariamente aquele monte de sacos em um recipiente específico para baixo do monte, de onde seriam levados embora do parque seguindo orientações da especialista internacional em descarte Inpacs, para algum destino venezuelano.

Magno Souza exibe assento sanitário usado em trilhas
O empresário Magno Souza, da Roraima Adventures, explica como usar o equipamento sanitário usado nas trilhas do Monte Roraima - Roraima Adventures

Claro que aquilo parecia um tanto esquisito para os que imaginávamos que só precisaríamos levar uma pazinha para, como gatos, enterrarmos o produto final das arepas e macarronadas digeridas nas trilhas. Mas se essa era a regra, assim seria feito. Não que a ação se revelasse tão simples como parecia: os fortes ventos do alto do monte insistiam em derrubar a tenda vertical, de estrutura estreita, frágil e instável. Às vezes, nós mesmos éramos jogados de um lado para outro durante o processo. Se o leitor quiser se divertir, pode imaginar a cena de meninas fazendo força para não deixarem o número 1 sair junto ao 2, como é hábito de 9 entre 10 mulheres, enquanto seguram as paredes de nylon da barraca, com as calças arriadas e os pés tentando dar um pouco mais de apoio ao conjunto. É sufoco que chama? Ah!

Barraca vertical usada como banheiro no monte Roraima é derrubada pelo vento
Barraca sanitária derrubada pelo vento no monte Roraima - Luiza Pastor

A solução encontrada naquele caso específico incluía um fator de alto, altíssimo valor quando falamos de trilhas e perrengues: a privacidade. Mesmo brigando com a estrutura, ela nos permitia evitar algum flagrante, em um cenário no qual mato alto e árvores são muito raras e os espaços para acampamento, bem apertados. Além do mais, no pedregoso solo do monte, não seria possível enterrar nada na maior parte do tempo. Gatos lá sofrem –mas não há gatos no monte Roraima. Eles não são bobos nem nada.

Mas não vá o menos avisado imaginar que essa é a regra para todas as trilhas e caminhadas na natureza. Aliás, são poucos os roteiros que incluem um trabalhador para fazer esse serviço ingrato. Mas, então, como fazer para dar fim àquilo que o gato enterra, afinal?

A primeira solução, mais óbvia, é fazer como o próprio gato: enterrar as fezes e demais dejetos orgânicos, como cascas de frutas e restos de lanches. A natureza, a princípio, se encarregará de absorver o que lhe convier daquilo que sobrou, certo? Há controvérsias.

Embora seja verdade que dejetos orgânicos se decompõem quando enterrados, alguns cuidados devem ser tomados na hora de escolher o local do funeral. Para começar, deve-se sempre procurar um local distante de corpos d’água, como rios, cachoeiras, lagos, nascentes e que tais. O motivo é simples: fezes podem conter agentes patogênicos e contaminar a água. Ninguém quer ver uma onça com diarreia, quer?

Tá, mas qual é a distância mínima a se manter da água na hora do aperto? E aí a coisa complica. Se o cidadão fosse abrir uma fossa séptica em sua casa e na propriedade houvesse um poço, a distância tecnicamente recomendada, em geral, seria de, no mínimo, 15 metros. Só que não falamos aqui de fossas de uso constante, mas de um alívio ocasional. Então, o que se pode dizer é: depende.

Depende do nível do terreno, de quantos dejetos vão ser deixados no buraco, até da saúde do usuário. E depende muito mais, principalmente, do número de pessoas que circula por aquela trilha. Porque é fácil imaginar o nível do impacto ambiental do recheio dos buracos sépticos, chamemos assim, em uma área como a do Parque Nacional de Itatiaia, na divisa do Rio de Janeiro e Minas Gerais, que em 2019 recebeu mais de 127 mil visitantes.

E um detalhe nada irrelevante: não basta enterrar os dejetos orgânicos. Papel higiênico, lencinhos umedecidos, embalagens de alimentos, tudo deve ser levado embora, não enterrado com o material orgânico. Ah, mas papel não se decompõe? Sim, se decompõe. Mas leva cerca de 4 meses. E ainda pode ser desenterrado por alguma chuva mais forte, esparramando o que não se quer ver compondo o que deveria ser apenas uma paisagem linda.

Para conciliar tudo isso, muitos parques em todo o mundo e guias de trilhas mais longas exigem de seus caminhantes que carreguem o que é conhecido como shit tube, nome que nada mais quer dizer que tubo de cocô. Basicamente, um tubo de pvc com uma base colada e uma tampa vedada com um anel de borracha no qual o usuário guarda seus dejetos orgânicos, e acrescenta um punhado de cal para secar a umidade que restou e eliminar odores. Recomenda-se que, antes de jogar o material orgânico no tubo, ele seja embrulhado em papel ou folhas secas, para facilitar a limpeza do próprio tubo, depois, bem como o descarte quando se chegar a um local adequado. E não, o local adequado nunca será um vaso sanitário normal: o cal pode entupir o encanamento. Melhor jogar no lixo, de preferência um recipiente para lixo orgânico e, melhor ainda, em saquinhos biodegradáveis.

Natachi Silva, guia de trilhas, aventureira e designer gráfica, em estrada de Santa Catarina
Natachi Silva, guia de trilhas, aventureira e designer gráfica, em estrada de Santa Catarina - Arquivo pessoal

"O lado mais positivo do shit tube é que, em montanhas muito frequentadas, é menos um dejeto por lá", pondera Natachi Silva,31, designer gráfica, guia de trilhas e aventureira. "Eu até me afastaria e enterraria em lugar certo, mas nem sempre é fácil explicar isso a iniciantes, então é mais fácil dizer 'lixo nenhum na montanha' do que tentar ensinar a cultura de adequação e explicar que tem que levar embora o papel usado, o lencinho etc", acrescenta ela, que usa um modelo ultra-leve menos rústico que o tosco tubo habitual, fabricado pela Gaia Adventure.

Tom Garbin, montanhista da Gaia Adventures, com shit tube ultra light
Tom Garbin, da Gaia Adventures, com o modelo ultra light de shit tube - Arquivo pessoal

O modelo 2.0 do tubo de cocô tradicional utiliza um tubo de PVC mais fino e flexível, desenvolvido pelo montanhista Tom Garbim. "Começamos fabricando o shit tube com cano de PVC normal, mas é um cano de construção pesado e de difícil manuseio, uma adaptação para o usuário e nunca um equipamento projetado para esse fim", explica ele. Depois de muitos protótipos, nasceu a Lixeira Portátil Outdoor. Um nome, convenhamos, bem mais comportado para incluir na próxima cartinha ao Papai Noel.

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