Era Outra Vez

Literatura infantojuvenil e outras histórias

Era Outra Vez - Bruno Molinero
Bruno Molinero
Descrição de chapéu Livros

Fereshteh Najafi abandonou o cinza do Irã para ilustrar livros infantis em Curitiba

'Deixei o meu país em busca de mais liberdade', diz a ilustradora iraniana, que lançou 'A Menina e as Estrelas' no Brasil

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Ilustração de Fereshteh Najafi

Ilustração de Fereshteh Najafi para "A Menina e as Estrelas", de Mariana Ianelli (ed. Olho de Vidro) Divulgação

São Paulo

"Seria mais confortável fazer por escrito, porque meu português ainda é limitado e sempre me frustro por não conseguir me expressar bem."

Foi assim que começou a conversa com Fereshteh Najafi, ilustradora iraniana que vive no Brasil desde 2015. Mas o receio na hora de expor ideias numa língua e num alfabeto novos, tão diferentes do farsi e do persa, foi como um céu que amanhece nublado, mas que rapidamente se desanuvia.

Em uma extensa troca de emails, a autora, que escolheu Curitiba para ilustrar seus livros para crianças e jovens, sublinhou posições com clareza delicada e falou de forma transparente sobre o Irã, o Brasil, a literatura infantojuvenil e o livro ilustrado.

"No Irã, eu já atuava como ilustradora e era diretora de arte de uma revista infantil de Teerã. Deixei o país em busca de mais liberdade e crescimento profissional", conta Najafi.

A fala resume uma das principais decisões da vida da autora, que se separou da família ao abandonar o país natal, para onde não voltou mais. Mas a frase se embaralha também à sinopse de seu livro mais recente lançado no Brasil. "A Menina e as Estrelas", com texto da brasileira Mariana Ianelli e publicado pela editora Olho de Vidro, apresenta uma garota que sai de sua cidade e ruma ao desconhecido em busca de independência e autonomia.

Retrato da ilustradora iraniana Fereshteh Najafi
Retrato da ilustradora iraniana Fereshteh Najafi - Divulgação

Na história, a terra da personagem é dominada pelo misterioso homem do realejo. Lá, "ai de quem cantasse qualquer coisa diferente", "ai de quem inventasse alguma nova brincadeira", "ai de quem quisesse qualquer coisa por querer". O resultado é uma sociedade quieta, vigiada, permeada por silêncios, onde a menina protagonista "não dizia o que sonhava, não ousava nem pensar".

A autora paulistana escreveu o título inspirada pela norte-coreana Yeonmi Park, que fugiu da ditadura de Pyongyang, foi vítima do tráfico de seres humanos na China, escapou para a Mongólia, se estabeleceu na Coreia do Sul, estudou nos Estados Unidos e se tornou ativista dos direitos humanos. "Mas, de certa forma, é minha história também", afirma Najafi. "Apesar de ser uma narrativa bem enxuta, é muito densa e me recorda as experiências pelas quais passei."

Aqui, não é preciso se alongar sobre a teocracia iraniana e as privações impostas à população, principalmente a feminina. Basta lembrar que, no ano passado, a jovem Mahsa Amini foi morta após ser detida pela polícia moral do país por não usar da forma correta o hijab, o véu islâmico.

Segundo a família e os ativistas, ela foi assassinada pela polícia. De acordo com a versão oficial, Amini morreu por causa de uma doença. O caso gerou indignação e protestos, que foram sufocados violentamente por dezenas de milhares de prisões, mortes durante os atos, condenações à morte e um endurecimento das regras sobre o uso do véu.

"Em 'A Menina e as Estrelas', não quis focar um país específico. Existem muitas ditaduras mundo afora e todas têm as mesmas características —são sociedades sem liberdade de expressão, submetidas a uma tirania", afirma a ilustradora.

Mas não é possível dizer que a arte de Najafi seja necessariamente militante, embora seja visível em seus livros o embate constante entre a força bruta e a delicadeza. No Brasil, ela tem apenas mais um título impresso, "Pê e o Vasto Mundo", de Paulo Venturelli, hoje no catálogo da editora Maralto. Atualmente, ela trabalha em um inédito para a Ôzé.

Ilustração de Fereshteh Najafi
Ilustração de Fereshteh Najafi para "A Menina e as Estrelas" - Divulgação

"Vejo no Brasil muitos autores e editoras interessantes. Ilustradores muito bons. Mas percebo que, apesar de ser um país populoso, o mercado de literatura infantojuvenil não é muito aquecido. Parece que, em geral, as crianças não leem muito", avalia. "No Irã temos problemas parecidos, mas a literatura parece ocupar um lugar maior na nossa cultura. É normal um motorista de táxi saber recitar versos de Hafez ou Khayyam", diz ela, referindo-se a dois poetas persas —o primeiro, do século 14; o segundo, do século 11.

Ao todo, Najafi tem cerca de 30 livros lançados em países como Itália, França, Líbano, Iraque, Emirados Árabes Unidos, além do Irã, é claro. Entre os eventos nos quais já expôs seu trabalho, aparecem circuitos importantes da literatura infantojuvenil e do livro ilustrado, entre eles a Bienal de Ilustração de Bratislava, na Eslováquia, o Nami Concours, na Coreia do Sul, e a Feira do Livro Infantil de Bolonha, na Itália.

Ilustração de Fereshteh Najafi
Imagem de "Le Roi Bahram", publicado na França - Divulgação

Em comum, seus títulos apresentam ilustrações feitas à mão, que abusam de texturas e cores terrosas. "Nos projetos pessoais, gosto de explorar minhas raízes. Minha ilustração dialoga com a antiga arte persa, principalmente as iluminuras."

Uma arte que agora é vista à distância. Ao deixar Teerã, em 2008, Najafi primeiro se mudou para a Itália. Foi lá que recebeu o convite para ilustrar "Pê e o Vasto Mundo", que naquela altura havia sido publicado pela editora Positivo, de Curitiba. Ao vir participar do lançamento no Brasil, em 2015, ela conheceu o marido, que trabalhava como editor de arte na editora. No fim daquele mesmo ano, já morava no Paraná.

"Gosto de Curitiba, é uma cidade organizada, cheia de lindas árvores e muitos pássaros", afirma. E como descreveria Teerã? "É cinza e muito grande. Com muitos engarrafamentos, muitos prédios, muitos gatos e corvos pelas ruas."

A Menina e as Estrelas

  • Preço R$ 69,90 (40 págs.)
  • Autoria Mariana Ianelli e Fereshteh Najafi
  • Editora Olho de Vidro

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