Seiscentos quilômetros separam Buenos Aires da fronteira brasileira, aproximadamente. Além disso, os ponteiros da capital argentina mostram os mesmos horários dos relógios de boa parte do Brasil. E um voo de só três horas faz uma pessoa sair de São Paulo e perambular por ruas portenhas.
Mesmo assim, é preciso fazer um garimpo paciente até encontrar livros argentinos infantis e ilustrados em lojas brasileiras. Mas o contrário também é verdade. Não é trivial achar nas incontáveis livrarias argentinas obras infantojuvenis produzidas deste lado de cá.
"Vocês que precisam dizer: por que é tão difícil entrar no Brasil?", pergunta a ilustradora e escritora Isol. "Talvez seja porque a produção brasileira é muito grande, com autores muito bons. O mesmo acontece com a música, que tem ainda mais dificuldade de cruzar a fronteira."
Quem fala é uma das mais reconhecidas autoras não só da Argentina, mas do mundo. Aos 51 anos, Marisol Misenta é mais conhecida pelo nome artístico de Isol e empilha prêmios como o Golden Apple da Bienal de Ilustração de Bratislava, na Eslováquia, e o sueco Alma, um dos mais importantes troféus do livro infantojuvenil, concedido pelo Astrid Lindgren Memorial —no Brasil, só Lygia Bojunga recebeu a distinção. Isol também foi finalista do Hans Christian Andersen, considerado o Nobel da literatura para esse público.
Mas só uma pequena parte de seus mais de 20 títulos, traduzidos para 17 idiomas, foi lançada por aqui. Entre os escritos e ilustrados por ela, "Ter um Patinho É Útil" foi publicado pela extinta Cosac Naify e saiu depois pela Sesi-SP. "Petit, o Monstro" teve edição da MOV Palavras, que não existe mais. Agora, a Pequena Zahar traz ao Brasil "A Costura", feito com bordados típicos da Palestina, que Isol conheceu após uma visita à região, no Oriente Médio.
A obra cria um magnetismo visual ao misturar as ilustrações da argentina, marcadas por personagens feitas com contornos pretos e cores chapadas que desrespeitam as bordas, à técnica de costura palestina, usada em vestidos, roupas de todo tipo e objetos de decoração. Para isso, a autora escaneou um xale que ganhou quando visitou o território, em 2018.
É aí que o título faz desabrochar o estranhamento que sempre aparece nos livros da ilustradora, que brincam com a quebra de regras e o exercício da liberdade. Isol digitalizou não só a parte da frente do bordado, mas também o avesso, onde sobram fios, nós e excessos de linhas. Os dois lados são usados nas ilustrações. Enquanto um mostra visualmente e narrativamente o mundo que conhecemos, o outro exibe um universo mágico chamado de Lado de Trás.
"A parte de trás do tecido me pareceu um lugar mais plástico, selvagem, imprevisível", diz. "Então resolvi trabalhar com essa ideia de dois mundos separados, mas que ao mesmo tempo são parte um do outro."
Na trama, a menina protagonista é a ponte entre a zona visível e a invisível, acessando o verso dos bordados com a ajuda de sonhos e de objetos que vai perdendo pelo caminho. As quinquilharias vão parar no desconhecido terreno do avesso e servem de elo entre o nosso lado e o místico Lado de Trás.
A metáfora visual e estética tenta dar resposta à simples pergunta "onde vão parar as coisas que perdemos?", mas acaba tocando em pontos mais profundos. É impossível ler uma história sobre mundos irmãos e separados, ainda mais ilustrados com bordados palestinos, sem pensar nos conflitos entre Israel e Palestina. A perda de coisas na realidade invertida também recebe novos significados num contexto tomado pela pandemia de Covid-19 e por despedidas e perdas forçadas.
"Histórias precisam trazer conflitos e, muitas vezes, ter um quê de rispidez para falar do que é humano. Muita gente quer tirar isso dos livros para crianças, porque julga que esses elementos não fazem bem à infância. Mas aí geramos uma censura estranha, que é uma censura, digamos, progressista", avalia Isol.
Na visão dela, esta é uma época de controle da literatura, sobretudo da infantojuvenil. "É o contrário do artístico, que é o campo da liberdade", afirma. "Se todos os personagens são exemplos de conduta, não existe história. O mesmo vale no nível gráfico. Tudo está virando desenhinho, principalmente nos Estados Unidos."
Cercada de livros em sua casa, em Buenos Aires, de onde conversa com este blog por chamada de vídeo, a escritora e ilustradora tira das prateleiras uma série de títulos fundamentais para a sua própria infância. São contos que falam de mesquinharias, ambições, pobreza, violência, muitos com ilustrações consideradas ousadas ainda hoje, feitas por nomes como Hermenegildo Sábat, cartunista que marcou a imprensa argentina.
"Falar da importância de cuidar do planeta ou de respeitar as diferenças é importante, mas isso não é função da arte. Se acharmos que a arte precisa educar, estamos fritos. Porque ela vai bem mais fundo, abre diálogos com o que é mais primitivo e coloca o leitor em conflito. Se um livro se limita ao que é seguro e ao que todos já sabem, é um mau livro. É preciso mais. A arte nos desloca."
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