Era Outra Vez

Literatura infantojuvenil e outras histórias

Era Outra Vez - Bruno Molinero
Bruno Molinero
Descrição de chapéu
Livros

Tatiana Belinky achou que fosse trote, mas era Monteiro Lobato

Escritora, que morreu há dez anos e revolucionou a literatura infantil, recebeu ligação inusitada do criador da Emília

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Já era noite. A casa na rua Itacolomi, em Higienópolis, descansava silenciosamente naquele fim de anos 1940. Enquanto os adultos conversavam na sala, os dois filhos pequenos do casal dormiam no quarto. Foi então que tocou o telefone, quebrando a quietude da região central de São Paulo.

A mulher a princípio achou estranho. Mas, como era casada com um jovem médico, não demorou a atender à ligação. Podia ser importante. Ela ainda não sabia, mas em breve participaria de um dos maiores encontros da literatura infantil brasileira.

A escritora Tatiana Belinky em 2012, um ano antes de sua morte, que completa dez anos
A escritora Tatiana Belinky em 2012, um ano antes de sua morte, que completa dez anos - Victor Moriyama/Folhapress

Assim que tirou o telefone do gancho, ouviu uma voz seca perguntar de forma direta se ali morava Júlio Gouveia. Respondeu que sim, que aquele era o nome de seu marido. E devolveu outra pergunta, querendo saber quem falava. Foi então que veio a surpresa.

"Aqui é Monteiro Lobato", disse a voz.

No que se tornou uma anedota literária, ela não acreditou. E respondeu de pronto: "Ah, é? E aqui é o rei George 6º", monarca da Inglaterra na época.

A mulher ao telefone era Tatiana Belinky, que iria se tornar escritora incontornável para crianças no Brasil. A autora morreu há dez anos, em 15 de junho de 2013, aos 94 anos.

Do outro lado da linha, porém, estava mesmo Monteiro Lobato. O criador do "Sítio do Picapau Amarelo" tinha lido havia poucos dias um artigo sobre sua obra escrito por Júlio Gouveia, marido de Tatiana —e resolveu ligar de surpresa para conhecer quem havia assinado o texto.

Acho que não é preciso dizer que receber um telefonema de Lobato não era nada trivial —ainda mais para Belinky, que era fã dos livros de Narizinho, Emília e companhia, lidos ainda na infância. Nascida em São Petersburgo, na Rússia, em 1919, ela emigrou com a família para o Brasil aos dez anos de idade.

Assim que aprendeu português, idioma que adotaria pelas oito décadas seguintes, a primeira história que leu na nova língua foi justamente "Jeca Tatuzinho", lançado em 1924 por Lobato. Por isso teve certeza de que aquela ligação recebida cerca de 20 anos depois era trote. Alguém deveria estar brincando.

O susto só aumentou quando o autor de "Reinações de Narizinho" confirmou ao telefone que era ele mesmo na linha e se convidou para ir à casa do casal. "Li o artigo e queria conhecer Júlio pessoalmente. Posso ir aí hoje mesmo?", perguntou.

Por volta das 21h, Lobato tocou a campainha de Higienópolis. O escritor, que já passava dos 60 anos àquela altura, entrou na casa e se acomodou na sala. Belinky costumava dizer que, antes de passar um café, ficou calada ao lado do marido, olhando para a visita improvável com pupilas arregaladas.

Infelizmente não se sabe muito bem sobre o quê exatamente falaram. Belinky contava mais sobre o susto e a resposta desaforada que deu para Lobato. O caso e as aspas contidas neste texto foram retiradas de diferentes entrevistas dadas pela autora ao longo dos anos —entre elas, uma para o seu amigo Antônio Abujamra, no programa Provocações, da TV Cultura, em 2004.

Aquele foi um dos maiores encontros da literatura infantil brasileira não somente porque de um lado estava quem criou o que entendemos hoje por livro para a infância no país. Mas também porque, do outro, havia uma futura escritora que deixaria mais de 250 títulos, entre poesias, contos, recontos, adaptações, peças e traduções de nomes como Hans Christian Andersen, Dostoiévski, Goethe, Gógol, Gorki, irmãos Grimm, Lewis Carroll, Charles Perrault, Tchekhov e Tolstói, só para citar alguns.

Além disso, Tatiana Belinky e Júlio Gouveia foram pioneiros em produzir programas para crianças na televisão e transmitir peças ao vivo na TV Tupi, a partir dos anos 1950. Foram eles que fizeram a primeira adaptação televisiva da obra de Monteiro Lobato. "Sítio do Picapau Amarelo", fiel ao texto original, contou com 360 episódios ao longo de uma década, com direção, produção, concepção e criação do casal. Graças a eles, as histórias entraram de vez na cultura de massa.

Mas nessa época Lobato já tinha morrido. E não passava mais trote para ninguém.

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