Poucas coisas são mais didáticas do que a moral da história que acompanha as versões atuais de "Os Três Porquinhos". Assim que o Lobo Mau não consegue invadir a casa de tijolos do último suíno nem derrubar as sólidas paredes levantadas com argamassa, imediatamente surge uma voz professoral que discursa sobre o trabalho árduo ser o caminho para o sucesso. E, assim, a história se torna uma fábula sobre a renúncia do prazer imediato.
Pois essa leitura de monges, executivos, pais ricos, pais pobres e demais coaches de autoajuda é demolida bloco a bloco por Luiz Antonio Simas em "Três Porquinhos Brasileiros", livro recém-lançado pela editora Cobogó.
Nesse reconto, tudo é invertido. É o trabalho sem descanso que causa o perigo, enquanto a salvação vem do que ainda hoje é chamado preconceituosamente de vadiagem —mas que são expressões fundamentais da nossa cultura, como a festa, a música e a poesia.
Com ilustrações de Bozó Bacamarte, a obra transporta a fábula para os interiores do Brasil, onde vivem Cícero, o porquinho violeiro; Heitor, o leitão que é de santo, arruda e patuá; e Prático, o que trabalha e não quer nem ouvir falar de distrações, é claro.
Já que o conto se passa em terras brasileiras, o papel de vilão sai das garras do Lobo e cai no colo da Onça. O felino é despertado de sua soneca pela barulheira das obras na casa de Prático, que adora uma reforma e uma martelada, e fica irado, louco para devorar o autor das perturbações.
Subvertendo a lógica parafusada desde sempre no nosso imaginário, o porquinho trabalhador foge e vai se refugiar com os irmãos festeiros para não ser transformado no presunto do almoço. A salvação não está nas paredes de tijolos, mas vem justamente da folia e da moda de viola.
Só que Simas faz mais do que bagunçar a moral tradicional, que exalta as formigas disciplinadas e critica as cigarras cantadoras. Ele vai além e homenageia o Brasil ao introduzir o leitor criança —e também o adulto— a diferentes manifestações culturais do país.
Aparecem na história o baião, o samba, as mulheres rendeiras e Oxalá, além da chula raiada, do ponteio, do fandango, da marujada e de outros temas que, por serem menos óbvios, ganham um glossário no fim.
Mas nem tudo está explicadinho. A edição abre brechas para descobertas, como se fosse uma caça ao tesouro. Bacamarte, por exemplo, usa a linguagem das xilogravuras, faz referências aos folhetos de cordel e flerta com o alfabeto armorial de Ariano Suassuna para criar as imagens, por exemplo. Tudo isso está lá, mas não didaticamente indicado.
Do outro lado, o texto é feito com versos rimados, cada um com sete sílabas poéticas —estrutura que é chamada de redondilha maior. Esse jeito de escrever costuma ser um dos mais usados por poetas, repentistas, compositores, violeiros e artistas da cultura popular. Como poemas e letras não costumavam ser escritos, a estrutura fixa facilitava a memorização.
Simas e Bacamarte, porém, não se tornam reféns dessa proposta e aproveitam para também brincar com as estéticas. Enquanto o texto picota as estrofes e usa os versos de um jeito mais livre, as ilustrações quebram as expectativas do imaginário sertanejo. Afinal, não é todo dia que vemos uma onça na caatinga com patins e óculos escuros saídos de alguma discoteca dos anos 1980.
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