Era Outra Vez

Literatura infantojuvenil e outras histórias

Era Outra Vez - Bruno Molinero
Bruno Molinero

'Flicts', de Ziraldo, extrapola o livro e ganha exposição em muro de Portugal

Clássico da literatura infantil brasileira é exibido a céu aberto durante o Folio, o Festival Literário Internacional de Óbidos

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Óbidos

É num pátio descoberto diante do Aqueduto da Usseira, que desde o século 16 emoldura o horizonte com seus arcos de pedra, que dezenas de ônibus desligam os motores todos os dias. De cada um deles, desembarcam dezenas de turistas ansiosos, prontos para conhecer, desbravar e sobretudo fotografar a vila medieval de Óbidos, em Portugal.

Por estar a cerca de uma hora de Lisboa e ter um castelo muito bem preservado, as muralhas ainda de pé e um labirinto de ruazinhas perdidas no tempo, a cidade entrou de vez na rota turística do país —o que ajuda a explicar o fluxo incessante de alemães, japoneses, franceses, espanhóis, italianos, chineses, poloneses, brasileiros e gente do mundo inteiro que rapidamente se espalha pelas vias de pedra.

Exposição de "Flicts", de Ziraldo, em Óbidos
Turista caminha em frente aos painéis da exposição de "Flicts", de Ziraldo, em Óbidos, em Portugal - Bruno Molinero

Mas desde a semana passada há uma diferença nesse caminho entre o estacionamento e a área histórica. Há mais um motivo para disparar flashes e posar para selfies. À esquerda de quem se dirige à vila, no muro pintado de branco e azul, bem em frente ao Museu Paroquial de Óbidos, está exposto um traço que é inconfundível para qualquer brasileiro. Lá está Ziraldo. É a arte do escritor, ilustrador, cartunista, pai do Menino Maluquinho e jornalista mineiro que dá as boas-vindas aos visitantes.

Ao todo, 40 painéis estão dispostos lado a lado na parede, nos quais pode ser vista de cabo a rabo, da primeira à última página, na ordem exata da narrativa, a íntegra de "Flicts". É como se o clássico da literatura infantil brasileira escapasse do livro, fosse contra as amarras do objeto e invadisse a paisagem portuguesa.

A exposição faz parte do Folio, o Festival Literário Internacional de Óbidos, que teve início no dia 12 e vai até domingo, dia 22. Além do evento, que tem ares de uma Flip lusitana, também organizam a mostra a embaixada brasileira, o Instituto Guimarães Rosa e o Instituto Ziraldo. O título, que no Brasil é publicado pela Melhoramentos, acaba de ser lançado em Portugal pela Tinta-da-China.

Mas, ao se espalhar pelos muros e ignorar as fronteiras do livro, "Flicts" ganha novas leitura e significados. Ao entrar em contato com as ruas, deixa de ser somente literatura e cruza as fronteiras das artes plásticas, da intervenção urbana, do cartaz político e da comunicação direta.

Um exemplo é quando Flicts, uma cor desprezada e tristonha, decide viajar o mundo e conhecer novos lugares. Ao visitar "os países mais bonitos", Ziraldo opta por ilustrar essa página específica com a bandeira do Brasil. Longe das livrarias e das bibliotecas, o trecho ganha outras reverberações.

Exposição de "Flicts", de Ziraldo, em Óbidos
Exposição de "Flicts" durante o Folio, o Festival Literário Internacional de Óbidos, em Portugal - Bruno Molinero

"E o Brasil por acaso é o país mais bonito? Só eles existem?", questionam duas jovens portuguesas ao passar em frente ao painel. Nem cinco minutos depois, um grupo de brasileiros se amontoa diante do mesmo cartaz, abre um sorriso, concorda com a frase e faz uma selfie.

O que talvez eles não saibam é que, em 1969, quando a obra foi lançada, essa mesma página trazia originalmente a bandeira do Reino Unido. Naquela época, o Brasil vivia sob os coturnos da ditadura militar, regime que, no ano anterior, havia decretado o AI-5, aumentado a repressão, diminuído ainda mais as liberdades e fechado o Congresso.

"Naquela época, 1969, a bandeira não me pertencia. Ninguém podia amar a bandeira do Brasil [...]. Tínhamos que respeitá-la. Só que aqueles que queriam que nós a respeitássemos confundiam respeito com medo. E aí, nós tínhamos medo da bandeira do Brasil", escreveu Ziraldo décadas depois.

O símbolo nacional só foi aparecer em "Flicts" nas edições publicadas a partir dos anos 1980. É esse o doloroso contexto histórico e político que está impresso silenciosamente nos muros de Óbidos. De alguma forma, esse pano de fundo também está presente nas paixões das garotas portuguesas e nas reações do grupo de brasileiros.

A foto mostra uma parte do muro de Óbidos, ao fundo, e algumas torres. Ele é feito de pedras, agora escurecidas. Ele está no alto de um morro, que é preenchido por várias casas brancas, de telhados avermelhados
Casas da vila histórica de Óbidos, em Portugal - Guillén Perez/Flickr

O mesmo ocorre com os outros painéis da mostra, mesmo que em diferentes níveis. Alguns visitantes leem a história e logo seguem o passeio. Outros não leem nada, mas tiram fotos e publicam as imagens nas redes sociais. E há ainda os que espiam as páginas só de canto de olho, apressados. Mas ninguém ignora a exposição. É impossível não notar os 40 cartazes com cores vibrantes e traços de Ziraldo.

Isso também acaba alterando significado do livro. No texto, Flicts até se afirma frágil, feio, aflito e solitário. Mas ali, escancarado no muro, à vista de todos, exposto ao sol, molhado pela chuva, diante da poeira dos ônibus, próximo a castelos e muralhas, sob os olhares dos turistas, ele não pode mais dizer que vive sozinho. Já não existe mais a "sua branca solidão".

Folio - Festival Literário Internacional de Óbidos

Flicts

  • Preço R$ 60 (80 págs.)
  • Autoria Ziraldo
  • Editora Melhoramentos

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