Era Outra Vez

Literatura infantojuvenil e outras histórias

Era Outra Vez - Bruno Molinero
Bruno Molinero
Descrição de chapéu Livros

Alzheimer, demência e perda de memória guiam novos livros infantis

'Bento Vento Tempo', 'Zaime' e 'Memória de Elefante' encontram diferentes caminhos para falar sobre os vazios da vida

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Talvez o jeito mais fácil de falar sobre os livros "Bento Vento Tempo", "Zaime" e "Memória de Elefante" seja a partir da ciência e dos números. Essas três obras apresentam para crianças e jovens um tema cada vez mais comum no mundo, mas ainda raro na arte para essa faixa etária por estar ligado a outra fase da vida —os casos de Alzheimer, demência e doenças que afetam a memória.

O crescimento aparece num relatório de 2021 da OMS, a Organização Mundial da Saúde. Segundo ele, cerca de 55 milhões de pessoas sofrem atualmente com algum tipo de demência, enquanto esse número deve quase triplicar até 2050.

Ilustração de Nelson Cruz para 'Bento Vento Tempo', de Stênio Gardel
Ilustração de Nelson Cruz para 'Bento Vento Tempo', de Stênio Gardel - Divulgação

Se crianças e adolescentes irão conviver cada vez mais com avós, pais, tios, parentes e conhecidos com Alzheimer e doenças do tipo, são muito bem-vindos lançamentos infantojuvenis que tocam de alguma maneira nesse assunto. Mas as lentes da ciência e da estatística não são suficientes para dar conta inteiramente de "Bento Vento Tempo", "Zaime" ou "Memória de Elefante".

Os três se destacam porque trabalham essa questão no campo da linguagem e da ficção. Transformam a erosão da memória em literatura. E encontram caminhos distintos na hora de fazer isso.

O mais recente é "Bento Vento Tempo", que acaba de sair pela Companhia das Letrinhas, na estreia de Stênio Gardel na escrita para a infância. O cearense virou notícia no ano passado após seu romance "A Palavra que Resta" ter se tornado o primeiro livro brasileiro a vencer o National Book Award, um dos principais troféus literários dos Estados Unidos. O título, vertido ao inglês por Bruna Dantas Lobato, foi premiado na categoria para obras traduzidas.

Em sua chegada ao universo infantil, Gardel escolhe a poesia para contar a história do próprio avô, que começa a perder a memória. Os versos metrificados evocam a tradição dos folhetos de cordel e apresentam a figura de Cacá, um sertanejo trabalhador que "foi calando devagar/ sem querer se retraía/ foi murchando seu vigor/ sem querer enfraquecia".

Ao ver que o avô se esquecia pouco a pouco de nomes, pessoas e coisas, mas seguia apegado a uma antiga fotografia, o menino-narrador tem uma ideia. Resolve levá-lo de bicicleta para a feira da cidade, onde ambos conhecem um ateliê de fotopinturas, técnica tradicional e popular que intervém em fotos e retoca imagens com tintas e pinceladas.

Stênio Gardel durante participação na Feira do Livro, que terminou em São Paulo no domingo (7)
Stênio Gardel durante participação na Feira do Livro, que terminou em São Paulo no domingo (7) - Ettore Chiereguini/Folhapress

É a partir daí que a relação dos dois e a própria vida do avô ganham novas tintas, camadas e retoques. A ponte entre arte e memória é acompanhada pelas ilustrações, feitas pelo premiado Nelson Cruz, que parece colorir fotografias antigas. Mas essa conexão aparece ainda em algo mais profundo —na própria poesia.

É bom lembrar que os poemas populares costumam ter formas fixas e rimas determinadas por causa da forte ligação com a literatura oral. A estrutura rígida ajudava poetas, cantadores e o próprio público a se lembrar dos versos, que não eram escritos, mas cantados, contados, declamados e espalhados no boca a boca. A forma predeterminada facilitava a memorização. Justamente a memorização que falta a Cacá.

Ilustração de Raquel Matsushita para "Zaime"
Ilustração de Raquel Matsushita para "Zaime", livro de Sônia Barros - Divulgação

Já em "Zaime", a escritora Sônia Barros também opta pela autoficção e transforma em literatura a sua relação com a mãe, diagnosticada com demência. Só que faz isso com outro tipo de linguagem.

Poética sem usar a poesia nem o verso, a história é apresentada como se fosse uma peça de teatro ou um roteiro de filme, com capítulos formados exclusivamente pelas falas de mãe e filha. A obra, lançada pela editora Abacatte e ilustrada por Raquel Matsushita, tem mais de 70 páginas de puro diálogo, nos quais o leitor mergulha sem boias num caudaloso rio de encontros e desencontros.

A desorientação logo se torna um jogo de espelhos. Os papéis se invertem. A mãe se torna filha da filha. A filha adota maternalmente a própria mãe. O tempo também se embaralha, ora com conversas no presente, ora com papos do passado.

Entre saltos temporais, repetições labirínticas e certezas nubladas, Barros faz algo poderoso. Ao ler "Zaime", nós nos sentimos ao mesmo tempo filha e mãe. Ficamos ansiosos e perdidos, compreensivos e carentes, preocupados e agradecidos. Somos adultos e crianças. Tudo junto. Misturado. Embaralhado.

Até que percebemos que o diálogo não é exatamente entre as duas. Ou não só. Há sempre um terceiro elemento. Um personagem oculto —o tal Zaime, como a mãe chama o Alzheimer. Ele está lá, à espreita, palpável, participando das conversas.

Por fim, "Memória de Elefante" adiciona um elemento fundamental a toda essa conversa —a solidão.

Com texto de Paula de Santis e ilustrações da iraniana Fereshteh Najafi, o título publicado pela ÔZé já coloca sobre a mesa uma contradição logo no título. Ter uma memória de elefante significa esbanjar uma boa memória, que não falha, jamais se esquece. É o inverso da demência apresentada no livro.

Mas é justamente essa faísca que sustenta a narrativa. Nela, a narradora também fala sobre a mãe, uma mulher que nasceu sozinha, numa família pequena, como nos grupos de elefantes. Por isso, após se casar, ela decide fazer o inverso e construir uma família imensa, cheia de filhos e netos reunidos numa casa movimentada e ruidosa.

Ilustração de Fereshteh Najafi para 'Memória de Elefante'
Ilustração de Fereshteh Najafi para 'Memória de Elefante', de Paula de Santis - Divulgação

Mas isso faz tempo. Apesar da família grande, a casa ficou vazia e silenciosa. A memória tampouco é a mesma, a ponto de a mulher perguntar o nome da própria filha. Músicas tocam só dentro de sua cabeça. Conversas se desenrolam com bichos imaginários. Um dia, ela espalha doce de leite sobre as pernas. E gargalha. E chora. E grita. E gargalha de novo. Sempre sozinha —de fato ou dentro de si mesma.

Texto e imagens criam juntos metáforas colossais para falar do isolamento dessa mãe e do seu descolamento da realidade e do presente, borrando as fronteiras entre o humano e o animal, a cidade e a floresta. Não à toa as ilustrações de Najafi acabaram selecionadas pela Feira do Livro Infantil de Bolonha deste ano e foram expostas durante o evento, que ocorreu na Itália em abril.

No fim, cada uma dessas leituras parece mostrar de jeitos diferentes que a falta de memória surgida por causa do Alzheimer e da demência não é sinônimo de memória nenhuma. É outra memória, que se torna matéria-prima literária nos três livros. Pode ser memória de elefante, poesia metrificada ou diálogo labiríntico. Só não pode ser um elefante na sala.

Bento Vento Tempo

  • Preço R$ 64,90 (40 págs.)
  • Autoria Stênio Gardel e Nelson Cruz
  • Editora Companhia das Letrinhas

Zaime - Retratos do Amor

  • Preço R$ 67,50 (72 págs.)
  • Autoria Sônia Barros e Raquel Matsushita
  • Editora Abacatte

Memória de Elefante

  • Preço R$ 62 (48 págs.)
  • Autoria Paula de Santis e Fereshteh Najafi
  • Editora ÔZé

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