Um tuíte por dia. Esse foi o compromisso assumido por um punhado de perfis nas redes sociais após a morte de Marielle Franco, em 2018, como forma de lutar contra o "esquecimento" da memória da vereadora assassinada e cobrar das autoridades a resolução das investigações.
Nos últimos cinco anos, a pergunta "Quem mandou matar Marielle e por quê?" tem sido repetida de forma mecânica por esses perfis, ao lado de uma contagem pública dos dias transcorridos desde a execução da vereadora e de seu motorista, Anderson Gomes.
O esforço manual e voluntário, feito por parentes, jornalistas e outras figuras encontra, até agora, poucas respostas: as investigações ainda não foram capazes de esclarecer se houve possíveis mandantes do crime ou qual a motivação; os dois PMs presos acusados de serem os executores ainda não foram julgados em primeira instância.
Nesta terça-feira (14), a contagem chega ao número 1.826, com o nome da vereadora alçado aos assuntos mais comentados no Twitter, somando mais de 11 mil menções até o início desta tarde.
"Virou meio que uma religião. Todo dia de manhã a gente reza e eu faço a postagem", conta a arquiteta Paula Reis, 56. Sem vínculos formais com organizações políticas ou movimentos sociais, ela adotou o hábito porque acredita se tratar de um crime político que necessita de mais visibilidade. Reis conta que sempre publica antes de ir para o trabalho, por volta das 5h, e garante que nunca deixou passar nenhuma data.
"É uma forma de mostrar que não ficou esquecido. Eu me lembro disso todo dia. Acho que foi um crime bárbaro que merece uma punição realmente efetiva e não deixar rolar do jeito que vem sendo", diz.
A arquiteta também afirma que nunca pensou em desistir da mobilização, mesmo depois de tantos anos, mas sente que ela precisa extrapolar a internet. "Me incomoda um pouco a coisa de só ficar na rede social. As pessoas acabam vendo mais [as redes], mas a gente tem que ir para as ruas."
Para o cartunista André Barroso, o protesto digital pode eventualmente gerar um cansaço nas autoridades responsáveis pela investigação. Ele define a mobilização que iniciou um mês após a morte da vereadora como a "gota que pode gerar um maremoto". Mais de mil tuítes depois, diz que está disposto a continuar até o "último sopro".
Os dois têm em comum o fato de terem sido inspirados pela contagem dos perfis da jornalista Eliane Brum e da cartunista Laerte no Twitter. Com quase 400 mil seguidores, Brum tem sido uma das responsáveis por popularizar a iniciativa.
"Só faço porque acho que é o certo a fazer: lembrar. Esse país precisa muito de memória, pagamos muito caro pelos apagamentos", diz ela à reportagem.
Já Laerte, que acumula audiência ainda mais ampla na rede (421 mil seguidores), afirma ter endossado a corrente por entender o caso como um "crime de significado muito específico, um escândalo político único, com possíveis implicações muito sérias."
A contagem pública, porém, já foi criticada por familiares de Marielle. Em uma entrevista à Folha em 2021, a atual ministra da Igualdade Racial Anielle Franco defendeu que o legado em vida da irmã fosse exaltado no lugar da sua morte.
"Me incomoda a contagem de dias da morte de Marielle. Prefiro contar os dias em que ela esteve viva comigo. Entendo que é a maneira para algumas pessoas de pedir justiça, mas não consigo caminhar desse lado", disse.
"Prefiro falar sobre um ano e três meses de mandato, 27 projetos de lei apresentados, 39 anos de vidas bem vividos."
Na ocasião, Anielle também criticou a banalização da imagem da vereadora, que passou a ter o rosto estampado em bandeiras e artigos de moda ao redor do mundo.
Para a vereadora Monica Benicio (PSOL), viúva de Marielle, entretanto, não é possível lembrar apenas dos momentos felizes ao lado da esposa enquanto não há uma conclusão do caso em termos de justiça.
"Essa não-resposta [do Estado sobre o caso] faz com que eu não consiga concluir meu luto; faz com que eu precise revisitar a ausência da Marielle sempre através da dor. Nunca através de uma saudade positiva, de uma saudade bonita", diz.
Monica conta os dias, meses e anos desde o assassinato em todas as redes que possui, todas as manhãs, logo depois de desligar o despertador. Além de colar a hashtag #QuemMandouMatarMarielleeAnderson, contemplando a homenagem a Anderson Gomes, morto ao lado da vereadora, Monica também questiona "quantos mais dias terei que contar?".
Ela diz que nunca pensou em desistir de encontrar as respostas, mas admite ter cogitado desistir da própria vida em algumas ocasiões. "É um processo de luto muito longo, muito doloroso, mas nem por um momento me imagino desistindo dela. Não consigo imaginar algo que fosse mais violento com o meu pacto de amor com a Marielle."
Monica reconhece um recuo na mobilização nas redes em torno do caso, algo que se acentua de forma natural ao longo dos anos, segundo ela. Mas assim como outros entrevistados, diz estar otimista com o andamento das investigações no novo governo Lula.
O presidente fez acenos ao caso durante a campanha eleitoral e, em fevereiro, o ministro da Justiça, Flavio Dino, determinou a abertura de um inquérito na Polícia Federal para ampliar a colaboração federal nas investigações.
"Eles disseram que era uma questão de honra a elucidação desse caso. É claro que numa conjuntura como essa, num cenário como esse, a única coisa que a gente pode ter é esperança", afirma Monica.
CRONOLOGIA
Assassinato
Em 14 de março de 2018, Marielle e Anderson são mortos a tiros ao saírem de evento no centro do Rio; a assessora Fernanda Chaves sofre ferimentos, mas sobrevive
Investigação federal
Em novembro de 2018, a Polícia Federal abre "investigação da investigação", para apurar denúncias de irregularidades e interferências no trabalho da Polícia Civil e do Ministério Público estadual
Batalha judicial
Em agosto de 2018, é expedida a primeira decisão judicial determinando que o Google forneça dados que possam ajudar a solucionar o caso
Prisão dos acusados
Em 12 de março de 2019, o policial militar reformado Ronnie Lessa e o ex-policial militar Élcio Vieira de Queiroz são presos e acusados pelo Ministério Público estadual pela execução do crime
1ª troca de delegado
Dias depois, a delegacia responsável pela apuração do caso troca de comando: Giniton Lages é substituído por Daniel Rosa na condução da segunda fase, para investigar os mandantes
Federalização
Em setembro de 2019, com base na investigação da PF, a então procuradora-geral Raquel Dodge pede a federalização das investigações e denuncia cinco suspeitos por terem tentado fraudá-las com depoimentos falsos —incluindo Domingos Brazão, conselheiro afastado do TCE-RJ
Citação a Bolsonaro
Em 29 de outubro de 2019, o Jornal Nacional, da Globo, divulga que um porteiro do condomínio Vivendas da Barra disse à polícia que foi Bolsonaro quem liberou a entrada de Élcio no local no dia do crime. Bolsonaro, porém, estava em Brasília e o Ministério Público apurou que essa versão era falsa
Não federalização
Em maio de 2020, STJ decide que caso não seria federalizado por unanimidade (oito votos a zero). A relatora Laurita Vaz não viu "inércia ou inação" das autoridades do RJ
Briga com o Google
Em agosto de 2020, STJ nega recurso do Google e confirma que a empresa deve compartilhar geolocalização de usuários a pedido da promotoria, o que até agora não foi feito. O caso subiu para o STF, ainda sem data marcada para o julgamento
2ª troca de delegado
Em setembro de 2020, depois que o governador Wilson Witzel (PSC) é afastado e o vice Cláudio Castro assume, um terceiro delegado é colocado no cargo: Moysés Santana
Criação de força-tarefa no MP-RJ
Em março de 2021, o Ministério Público do Rio de Janeiro cria uma força-tarefa para investigar o caso. O grupo foi estruturado com três promotores, sendo um deles Simone Sibilio, que acompanhou a apuração desde 2018
Lessa é condenado por destruição de provas
Em julho de 2021, Ronnie Lessa é condenado a quatro anos e seis meses de reclusão por ocultação e destruição de provas no caso
3ª troca de delegado
Em julho de 2021, o delegado Henrique Damasceno deixa a 16ª DP (Barra da Tijuca) e assume a chefia da Delegacia de Homicídios da Capital, incluindo o caso Marielle
Promotora deixa as investigações
Em julho de 2021, a promotora Simone Sibilio deixa o caso em meio a divergências causadas pelo acordo de colaboração premiada fechado com Júlia Lotufo, viúva do miliciano Adriano da Nóbrega. MP-RJ anuncia nova força-tarefa com oito promotores
4ª troca de delegado
Em fevereiro de 2022, a investigação do assassinato de Marielle passa para as mãos do delegado Alexandre Herdy, o quinto a assumir o caso
Julgamento
O tribunal do júri contra Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz ainda não tem data para acontecer, já que a defesa entrou com recurso no STJ. Os mandantes do crime ainda não foram identificados
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