Políticas e Justiça

Editado por Michael França, escrito por acadêmicos, gestores e formadores de opinião

Políticas e Justiça - Michael França
Michael França
Descrição de chapéu Vida Pública

A queda da ordem neoliberal e a valorização da política

Livro faz uma análise sobre o modelo que moldou esquerda e direita em quase todo o mundo

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Pedro Abramovay

Advogado e diretor para a América Latina da Open Society Foundations

O professor da Universidade de Oxford Gary Gerstle publicou no ano passado o livro "A Ascensão e Queda da Ordem Neoliberal". Gerstle faz uma análise interessante sobre como o neoliberalismo produziu um sistema de valores que governou os EUA e moldou esquerda e direita em quase todo o mundo entre o fim dos anos 1970 e o início dos anos 2010.

Esse sistema, que se impôs como alternativa ao modelo do Estado de bem-estar social, transfere do Estado para o mercado a responsabilidade para solucionar — ou administrar — a grande maioria dos problemas sociais.

Como o próprio título do livro aponta, para Gerstle o neoliberalismo é um modelo já em queda. Essa queda pode ser notada pela força do modelo chinês, que tem no Estado o grande impulsionador do desenvolvimento. Também foi vista nas respostas dadas por distintos governos, primeiro à crise bancária de 2008 e, principalmente, durante a pandemia. Está presente ainda na incapacidade do mercado de lidar com desafios gigantescos como a crise climática. A ideia de que é possível criar um modelo de desenvolvimento que não tenha no Estado seu principal motor quase não encontra mais apoio no debate global.

O exemplo mais recente disso é o ambicioso plano aprovado pelo Governo Biden, o Inflation Reduction Act (IRA). Este pacote de medidas propõe o uso de US$ 4 trilhões para uma transição verde e justa nos EUA, assumindo o papel central do Estado no direcionamento da economia. Um programa dessa ordem e com esse formato seria impossível há alguns anos.

Pedro Vieira Abramovay é advogado, formado em direito pela USP, mestre em direito pela Universidade de Brasília e doutor em ciência política pelo Iesp-UERJ; atualmente é diretor executivo para a América Latina e Caribe da Open Society Foundations - Divulgação

O modelo neoliberal, ao relegar ao setor privado a produção e implementação de políticas públicas, acabou fortalecendo a visão de que há apenas uma solução tecnicamente correta para cada problema social. E que é o mercado quem tem a capacidade de encontrar essa resposta. O mercado, porém, não encontra uma solução técnica, apolítica. Encontra uma solução política e disfarça essa decisão de técnica. Essa visão despolitiza os problemas e os afasta dos debates democráticos, gerando uma aversão da sociedade a tudo que se denomina político.

Qualquer problema social pode ser solucionado de diversas formas. Cada uma dessas formas vai gerar perdedores e ganhadores distintos. E essa escolha, em democracias, é política.

Uma política de desenvolvimento da Amazônia, por exemplo, pode ser feita com a destruição das florestas e o desrespeito às populações locais ou pode ser feita de maneira a olhar para a floresta em pé como ativo importante para o país. Uma política de empregos pode privilegiar os direitos dos trabalhadores ou a facilidade para se contratar. Essas alternativas têm que ouvir subsídios técnicos, mas não poderão fugir das escolhas políticas que elas implicam.

Quando o mundo todo transfere de volta para o Estado a missão de lidar com os problemas sociais, não vai mais ser possível fugir dos debates políticos para encontrar soluções de políticas públicas.

Cada decisão pública deve explicitamente reconhecer quais os ganhadores e perdedores e esse debate deve nortear as discussões democráticas. A era da discussão pretensamente neutra ou apolítica sobre políticas públicas acabou. O grande desafio é como equilibrar subsídios técnicos com a construção de alternativas claras para que a democracia possa escolher caminhos justos.

O Brasil tem a vantagem de possuir um guia amplo para que a política possa medir se está ou não no caminho certo. Esse guia está na Constituição de 1988 que, em seu artigo 3º, lista os objetivos de nossa República: "Construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação."

Com o consenso de que o neoliberalismo não nos aproximará desses objetivos, está claro quem deve ser o motor desse processo é o Estado brasileiro. E, para que nossa democracia consiga fazer isso, é fundamental revalorizar a política como a única capaz de levar o Estado a equacionar nossos problemas sociais.

O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço "Políticas e Justiça" da Folha sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida por Pedro Abramovay foi "Um sonho", de "Gilberto Gil".

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