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'Não põe mesa': leitora lembra época do curso 'caça marido' e pressão pela beleza

'Seria correto, ainda hoje, afirmar que a mulher é o único ser racional que precisa ser bonita para ter crédito?', questiona

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Malu Biscaia

Certo dia perguntei: "Pai, você me acha bonita?"

Ele, num excesso de sinceridade, responde: "Bonita propriamente não. Mas é uma menina inteligente e educada."

Aquela resposta caiu como um punhal na minha autoestima. Estava instalada a hesitação entre o belo e o prático. Qual seria o mais importante? Enquanto a beleza encanta e abre o apetite, a praticidade leva à fartura, sobressaindo o lado prático da vida.

De Portugal veio o provérbio "beleza e formosura não dão pão nem fartura". Entre os brasileiros a mesma ideia é expressa por "beleza não põe mesa", sendo que muitos acrescentam: "mas abre o apetite".

À época, eu com 17 anos na década de 1970, passava pelo doloroso processo de amadurecimento. Cursava o último ano da Escola Normal Colegial de Educação Familiar, seguia me ajustando e procurando o meu lugar. Por insistência de minha mãe, ao invés de fazer o científico, que me prepararia para o vestibular, me preparava para o casamento. Minha timidez e introspecção fizeram com que passasse os três anos do curso sem um único namorado.

Dias melhores
Catarina pignato

"Malu, vão erguer uma estátua para você na frente do prédio de sua escola. Você deve ser a única que não conseguiu caçar um marido", comentou meu irmão.

Na época esse curso era conhecido como "Caça Marido", pois preparava as moças para a vida marital com suas disciplinas de culinária, bordado, costura e puericultura. A saída após as aulas era considerada a mais concorrida da cidade, com marmanjos à procura de jovens casamenteiras.

Algumas mais empenhadas em atrair bons partidos caprichavam nos penteados e maquiagem. O uniforme era bonito, com saia de prega em tecido xadrez, nas cores marinho e bordô, blusa branca e uma malha azul-marinho com transpasse e abotoamento com botões dourados. Algumas caprichavam no visual provocativo, enrolando várias vezes a cintura da saia, que ficava com altura no meio das coxas. A minissaia improvisada tornava o visual moderno e instigante.

Nas minhas reflexões, considerava beleza fundamental, sem saber que muitas mulheres bonitas poderiam gastar seus melhores anos e esperanças em relacionamentos equivocados. Diferente das feias, elas têm mais escolhas, o que pode muitas vezes também atrapalhar. Com isso me virava como dava, estudando bastante, descobrindo minha identidade, sem saber o quanto esse processo é longo.

A leitura do livro A arte de ser mulher, de Carmen da Silva, ajudou muito, me levando a entender que só teria autonomia se adquirisse independência financeira. Este lema norteou minha vida, até me transformou. Ganhei o livro de meu irmão mais velho, João Luís, em fevereiro de 1970, com a seguinte dedicatória: "Leia com atenção Malu e aplique os conceitos aqui expostos’’.

Com protagonismo na década de 1970, Carmen escrevia coluna na revista Claudia, onde prestou valioso serviço às mulheres, além de contribuir para melhorar a mentalidade masculina no entendimento e compreensão do universo feminino. O contexto da época reconhecia que o papel da mulher era voltado ao lar, marido e maternidade. Nesses quesitos, entendo que a beleza teria maior peso na condição de conseguir um marido, enquanto na administração do lar e criação dos filhos predominariam as ferramentas cognitivas. Seria correto, ainda hoje, afirmar que a mulher é o único ser racional que precisa ser bonita para ter crédito, senão seria mal-amada e frustrada?

Vivenciamos atualmente o protagonismo feminino em várias áreas do tecido social, sendo fundamental no progresso da sociedade. Grandes transformações na sociedade são transgeracionais, ainda há muito a ser feito.

Hoje, quando minha neta perguntou se eu me achava bonita, respondi com tranquilidade: "Bonita propriamente não, mas criei uma imagem. Sei quais roupas me favorecem, estou de bem com meu corpo e tenho uma rotina de autocuidado."

Pensativa, ela responde: "Entendi."

Quer saber? Acho que meu pai tinha razão.



Malu Biscaia, 70, é bióloga aposentada que mora em Curitiba. Casada há 45 anos, Malu é mãe de três filhos, avó de três netos e escritora amadora.

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