Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite
Descrição de chapéu Mente

Austrália autoriza psiquiatras a receitar MDMA e psilocibina

Psicodélicos poderão tratar estresse pós-traumático e depressão resistente

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São Paulo
Quadro formando círculos e fixaas onduladas com milhares de pontos em azul, preto e branco
Reprodução - Creative Commons

Por essa ninguém esperava: o governo da Austrália emitiu autorização para que psiquiatras especialmente licenciados prescrevam duas substâncias psicodélicas a pacientes. São elas a MDMA, base da droga recreativa ecstasy, e a psilocibina, extraída originalmente de cogumelos ditos "mágicos", do gênero Psilocybe.

A autorização da TGA, sigla em inglês de Administração de Bens Terapêuticos, o equivalente da Anvisa, vale só em situações particulares. Apenas psiquiatras aprovados por comitês de ética e com uma licença de especialista autorizado poderão receitar os dois compostos.

Além disso, a prescrição será viável para duas únicas condições mentais diagnosticadas: MDMA para transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) e psilocibina para depressão resistente a tratamento. As drogas terão de ser administradas em ambiente controlado, como hospitais e centros de pesquisa.

Apesar das restrições, é um passo pioneiro no sentido da regulamentação de psicodélicos como medicamentos. A decisão a TGA passa a valer em julho, quando provavelmente alguns psiquiatras já terão obtido a licença especial.

A partir daí, o primeiro efeito será facilitar muito a pesquisa clínica com esses compostos, no entendimento do psiquiatra Luís Fernando Tófoli, professor da Unicamp envolvido em estudos de ayahuasca, cetamina e LSD. Esse é um campo em que a Austrália tem intensificado a atividade, e a medida parece talhada a fomentar mais estudos.

A regulamentação australiana não exclui, aparentemente, que pacientes tomem MDMA ou psilocibina em tratamentos avulsos, fora de protocolos de pesquisa. Tanto é que a agência já publicou um guia de perguntas e respostas com itens dedicados a profissionais e consumidores interessados nos psicodélicos.

"Há dois ou três anos o governo australiano vem liberando muito dinheiro para pesquisa com psicodélicos", diz Nicole Galvão-Coelho, pesquisadora de psicodélicos na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) que mantém colaboração com pesquisadores australianos.

"A gente já vê estudos clínicos com psilocibina em andamento em vários hospitais, como em Melbourne. Eles investem no que acreditam."

A autorização veio em consequência de uma revisão do uso psiquiátrico de MDMA e psilocibina encomendada a três especialistas, Steve Kisely, do sistema de saúde pública em Brisbane, Mark Connor (Universidade Macquarie) e Andrew Somogyi (Universidade de Adelaide). Eles avaliaram que há boa evidência estatística de benefícios das duas substâncias nas condições destacadas, distúrbios mentais para os quais há poucas alternativas terapêuticas eficientes no momento.

O princípio ativo do ecstasy se encontra mais perto de aprovação, pois foram concluídos dois testes clínicos de fase 3 de MDMA para TEPT que devem fundamentar pedido de licença à FDA (agência de fármacos dos EUA) neste ano. Se a agência americana der sua aprovação, o que pode ocorrer em 2024 ou 2025, ex-combatentes e vítimas de violência poderão submeter-se a psicoterapia assistida pelo psicodélico, possivelmente com cobertura por seguros de saúde.

Cogumelos multicoloridos
Ilustração de Raphael Egel - @liveenlightenment

A psilocibina para depressão vai na mesma trilha. Ensaios de fase 2 já foram publicados, como o da empresa britânica Compass Pathways com 233 pacientes, e outros de fase 3 estão em preparação. Seu maior concorrente é o Instituto Usona (EUA).

"É extremamente importante que a Anvisa remova esses compostos da lista de substâncias proscritas para o grupo de substâncias controladas, como os australianos fizeram", diz Tófoli. "Isso facilitaria imensamente a pesquisa brasileira. E eu iria além, pondo também a DMT [dimetiltriptamina, psicoativo da ayahuasca] nessa classificação."

O Brasil apareceu em terceiro lugar, num levantamento de 2021, como o país com maior número de artigos científicos de grande impacto sobre psicodélicos. Isso aconteceu, em grande medida, por causa da tradição de estudos sobre ayahuasca, inclusive um ensaio muito citado da UFRN que testou o chá contra depressão resistente.

"Eu não acho tão fácil isso acontecer no Brasil, um país mais conservador, mais burocrático", ressalva Galvão-Coelho.

Nos Estados Unidos, a regulamentação de psicodélicos vem se dando por iniciativa de governos estaduais e municipais. Oregon e Colorado aprovaram em plebiscitos acesso a psilocibina por "facilitadores" licenciados, que não precisam ser profissionais de saúde Uma dezena de outros estados, como a Califórnia, debatem legislações parecidas.

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AVISO AOS NAVEGANTES - Psicodélicos ainda são terapias experimentais e, certamente, não constituem panaceia para todos os transtornos psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou médico antes de se aventurar na área.

Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira".

Sobre a tendência de legalização do uso terapêutico e adulto de psicodélicos nos EUA, veja a reportagem "Cogumelos Livres" na edição de dezembro de 2022 na revista Piauí.

Não deixe de ver também na Folha as reportagens da série "A Ressurreição da Jurema":

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/reporter-conta-experiencia-de-inalar-dmt-psicodelico-em-teste-contra-depressao.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/da-caatinga-ao-laboratorio-cientistas-investigam-efeito-antidepressivo-de-psicodelico.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/cultos-com-alucinogeno-da-jurema-florescem-no-nordeste.shtml

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