Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite
Descrição de chapéu Mente saúde mental

O piloto chapado e o fantasma do revertério psicodélico

Más notícias podem acarretar retrocesso em testes clínicos

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Vários cogumelos em cores psicodélicas compões a figura de duas cabeças
Ilustração de Raphael Egel - @liveenlightenment

Chamou atenção, recentemente, o caso de um piloto americano que, mesmo fora de serviço, criou situação arriscada na cabine de um voo da Alaska Airlines. Ele tentou desligar os motores do jato e depois alegou que tinha consumido cogumelos psicodélicos do gênero Psilocybe.

Foi quanto bastou para reviver o espectro de um revertério sociocultural dos psicodélicos, agora que essas substâncias modificadoras da consciência começam a recuperar prestígio aos olhos do público. Duas décadas de pesquisas clínicas promissoras com elas, por exemplo para tratar depressão, estariam ameaçadas de novo colapso.

A memória do trauma da contracultura sempre aflora na ciência psicodélica. Nos anos 1960/70, após o LSD, a maconha e a psilocibina dos cogumelos caírem nas graças do movimento hippie pacifista, a reação conservadora veio com a famigerada Guerra às Drogas de Richard Nixon, então presidente dos EUA.

As crescentes restrições, a partir de 1966, terminaram por erradicar de instituições de pesquisa os estudos com psicodélicos. Eles vinham desde a década de 1950, no tratamento de alcoolismo e em psicoterapia, entre outras aplicações, e progressivamente se transformaram em tabu acadêmico, tipo fim de carreira.

Após a virada do século, o tema de pesquisa voltou com alguns pioneiros mais corajosos, como David Nutt, no Reino Unido, Rick Doblin e Roland Griffiths (morto recentemente), nos EUA. Com base nas pesquisas que lideraram, hoje o MDMA (ecstasy) segue no rumo de aprovação pela FDA para tratar transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), e em sua esteira vem a psilocibina para depressão.

Homem idoso discursa com a mão fazendo sombra aos olhos
Pesquisador Roland Griffiths faz apresentação na conferência Psychedelic Science 2023 - Marcelo Leite/Folhapress

Até aqui, os ensaios clínicos são pequenos, raramente ultrapassando a casa das dezenas de voluntários. Contam-se nos dedos de uma só mão os testes controlados que chegaram a uma ou duas centenas.

O financiamento é escasso. A proibição federal e o preconceito científico dificultam que instituições parrudas dos EUA, como os NIH (Institutos Nacionais de Saúde, em inglês), destinem recursos para psicodélicos.

A reabilitação definitiva viria com a autorização da FDA para psicoterapias assistidas por psicodélicos, mas estas dependem da continuidade dos testes clínicos controlados. Os NIH têm aberto exceções, mas estarão sujeitos a pressão política, caso a imagem dessas substâncias fique manchada por episódios como o do piloto chapado.

Isso para não falar do potencial para abusos psicológicos e sexuais. Houve já um caso rumoroso de relações carnais entre paciente e terapeuta, em 2015 no Canadá, no estudo com MDMA/TEPT da Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (Maps). Não faltam relatos de abusos no turismo de ayahuasca que ocorre no Peru.

Casos assim servem de alerta para a tendência, inclusive jornalística, de tratar os psicodélicos como substâncias inofensivas. Não são.

Embora o perfil toxicológico seja de baixo risco e a capacidade de gerar dependência, quase nula (com exceção da cetamina), eles tornam as pessoas muito sugestionáveis, portanto vulneráveis. Além disso, podem desencadear surtos em indivíduos com histórico pessoal ou familiar de psicose.

Dirigir automóveis ou pilotar aviões sob efeito de LSD, cogumelos ou ayahuasca nunca foi nem será boa ideia, a começar pelas alterações visuais e de espaço e tempo que ocasionam. Além disso, MDMA e ibogaína pode provocar alterações cardíacas.

Umas das vias para contornar a proibição federal, nos EUA, têm sido as iniciativas populares. Estados como Oregon e Colorado, além de várias cidades, já admitem serviços em que facilitadores registrados oferecem sessões com cogumelos.

Na Califórnia, legislação descriminalizadora chegou a ser aprovada no Parlamento estadual, mas terminou vetada pelo governador democrata Gavin Newsom. Semanas depois, engatou-se a marcha a ré na iniciativa popular Treat, que pretendia submeter a referendo em 2024 a proposta de US$ 5 bilhões para pesquisas com psicodélicos.

O freio foi puxado após uma pesquisa de opinião pública desfavorável. Embora 74% dos entrevistados apoiassem a investigação científica de alternativas para a crise de saúde mental, 60% não confiariam numa agência governamental para financiar esse esforço.

Com base nisso, o movimento retirou a proposta e se rebatizou como Treat Humanity. A partir de agora, vai dedicar-se a desenvolver tratamentos, estudos, educação, acesso e terapias para saúde mental.

"Este movimento é maior do que qualquer iniciativa eleitoral isolada", afirmou no comunicado Guy McDermott, ex-fuzileiro naval, hoje bombeiro. "Terapias assistidas por psicodélicos seguras e eficazes são necessárias para nos ajudar a atravessar essa crise de saúde mental."

Referindo-se a veteranos com TEPT que buscam tratamentos alternativos na Jamaica, no México ou na Costa Rica, ele afirmou: "Nossos militares não deveriam precisar deixar o país para receber terapias que salvam vidas. Não vamos parar até as pessoas que sofrem receberem a ajuda de que precisam e merecem".

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AVISO AOS NAVEGANTES - Psicodélicos ainda são terapias experimentais e, certamente, não constituem panaceia para todos os transtornos psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou médico antes de se aventurar na área.

Sobre a tendência de legalização do uso terapêutico e adulto de psicodélicos nos EUA, veja a reportagem "Cogumelos Livres" na edição de dezembro de 2022 na revista Piauí.

Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira".

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