'Talento é uniformemente distribuído entre gêneros', diz 2ª mulher a receber Medalha Fields

Em entrevista à Folha, Maryna Viazovska diz ser fundamental que famílias apoiem garotas que se interessam por matemática e ciências

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São Paulo

Quando o feirante empilha laranjas (ou qualquer outra fruta mais ou menos esférica), de modo a maximizar a quantidade de laranjas num determinado espaço, ele está resolvendo, na prática, um problema matemático que nos acompanha há séculos.

Na última edição da Medalha Fields, em 2022, prêmio de matemática concedido a cada quatro anos a expoentes da área com menos de 40 anos, a ucraniana Maryna Viazovska foi agraciada por ter resolvido um problema parecido com o do feirante, mas numa configuração um tanto mais desafiadora.

A ucraniana Maryna Viazovska, segunda mulher a ser agraciada com a Medalha Fields, prêmio de matemática concedido a cada quatro anos a expoentes da área com menos de 40 anos
A ucraniana Maryna Viazovska, segunda mulher a ser agraciada com a Medalha Fields, prêmio de matemática concedido a cada quatro anos a expoentes da área com menos de 40 anos - Vesa Moilanen/Lehtikuva/Reuters

No século 17, o problema de empilhamento de esferas (ou laranjas), foi resolvido pelo astrônomo e matemático alemão Johannes Kepler, só que com um porém: ele chegou à resposta certa (é possível ocupar um pouquinho mais de de 74% do espaço com os sólidos), mas não demonstrou isso. A prova custou a vir, e, depois de muito esforço, só foi anunciada já no século 21.

E esse era um problema, digamos, mais simples, em três dimensões —altura, largura e profundidade. O trabalho de Viazovska que lhe rendeu a Medalha Fields mostrou como seria empacotar esferas de oito e de 24 dimensões.

Não há uma ligação direta da pesquisa de Viazovska com aplicações tecnológicas, embora o arsenal de ferramentas matemáticas desenvolvido por ela e colaboradores no processo possa ter serventia em outras áreas, como processamento de sinais e telecomunicações.

Ela é apenas a segunda mulher a receber a láurea, depois da iraniana Maryam Mirzakhani (1977-2017), agraciada, assim como o brasileiro Artur Avila, em 2014.

À Folha Maryna Viazovska falou sobre a escolha de sua linha de pesquisa, sobre a empolgação necessária para se ensinar matemática e sobre a guerra que afeta seu país natal.

Como nasceu sua relação com a matemática? Como foi a decisão de seguir essa carreira? Matemática sempre foi minha matéria favorita na escola, eu sempre gostei de estudar. Então, quando descobri que havia oportunidades de estudar mais e mais matemática, sempre corri atrás delas.

Por que resolveu estudar problemas de otimização geométrica? Eu me dediquei a diferentes áreas da matemática. Um pouco de Teoria da Aproximação [que visa descrever fenômenos complexos com elementos mais palpáveis], depois fiz meu mestrado em álgebra computacional [que tem foco na resolução de problemas usando símbolos, não necessariamente calculando quantidades] e meu doutorado em Teoria dos Números e Teoria de Formas Automórficas.

Geometria, assim como otimização, era um tema comum a todas essas áreas. Gosto de geometria porque ela tem essa cara de "jogo", com regras claras. Se você tem um problema, tem que achar os critérios para as melhores soluções possíveis. Outra coisa que gosto é que não tem uma regra geral para o sucesso. Para problemas diferentes, tem de haver ideias diferentes.

Talvez as pessoas se conectem mais facilmente com problemas mais geométricos. Sim. Acho que uma das coisas bonitas que o Hilbert [prolífico matemático alemão] disse é que a geometria não seria propriamente uma "área" da matemática, mas uma linguagem. E há muitas outras questões que podem ser traduzidas para a linguagem geométrica. E aí todas essas conexões ficam mais aparentes.

Poderia explicar como acontece uma descoberta matemática? Muda muito de pessoa para pessoa, mas para mim funciona pensando bastante sobre os problemas. Não é como um problema, digamos, médico, que você tem minutos ou horas para resolver. Na matemática isso pode levar anos. Aí você subdivide o problema em problemas menores, e começa por eles. É muitas vezes um processo interativo.

É importante tentar diferentes ideias, e essas ideias desembocam em cálculos. Na maioria das vezes, no meu caso, esses cálculos não levam à solução. Aí faço os ajustes e reinicio o processo, tentando novas estratégias, quem sabe a certa?

É possível ainda que, como acontece com muitos problemas em matemática pura, ainda não saibamos quais são essas estratégias —ou se elas existem.

A ucraniana Maryna Viazovska mostra sua Medalha Fields, recebida na cerimônia de premiação realizada em Helsinque - Vesa Moilanen/Lehtikuva - 5.jul.22/Reuters

Existe a perspectiva de o problema do empacotamento de esferas, que você resolveu, ter alguma aplicação tecnológica? Ao simplesmente conhecermos essas configurações já estamos ajudando a humanidade; isso desde antes de eu nascer. Existe um ramo da matemática entre a matemática aplicada e a ciência da computação chamada Teoria de Códigos [que auxilia, por exemplo, na compressão de dados] e que utiliza o empacotamento de esferas, com aplicações em Teoria da Informação e em processamento de sinais —bem práticos.

O meu trabalho foi a prova, o argumento lógico de que nada melhor pode ser feito. Se você pensar, é simples mostrar que algo pode ser feito: você vai lá, faz, e isso já é a prova de que algo é possível. Mas provar que algo não pode ser feito é costumeiramente muito mais difícil do ponto de vista matemático. Mas você perguntaria: qual a utilidade prática? A primeira é que ninguém vai continuar procurando configurações melhores de empacotamento [risos].

Mas, para chegar nessa prova, construí algumas funções especiais, com propriedades inusuais. Elas, sim, podem ser usadas para um melhor processamento de sinais, ou para a solução numérica de certas equações diferenciais [relações matemáticas que explicam uma série de fenômenos, de epidemias a previsão do tempo].

Mas, de novo, eu não sou uma matemática aplicada. Para mim o importante foi achar essa nova estrutura. Quem sabe o principal seja que eu goste de belas estruturas matemáticas. Elas sempre são úteis.

Em que tipos de problemas está trabalhando atualmente? Apenas pensando em otimização geométrica, existem muitas questões abertas. Em relação ao problema do empacotamento de esferas em dimensão 3, ele foi resolvido por Thomas Hales [matemático americano que provou a chamada Conjectura de Kepler], então a dimensão 4 é a menor em aberto. Ainda tenho esperança de resolvê-lo nesta vida. Existem também muitos problemas interessantes em dimensão 2.

Mas uma das minhas questões favoritas é esta: o que acontece com o empacotamento de esferas em dimensões muito altas? Quais são os limites superiores e inferiores? As discrepâncias entre eles e as configurações conhecidas são enormes. Como o número de dimensões possíveis é infinito, também é infinito o número de questões.

Mudando um pouco de assunto, como você enxerga o interesse e o conhecimento de matemática das pessoas hoje em dia? O fato é que nossa capacidade de prestar atenção está ficando cada vez menor e menor. Estamos distraídos o tempo todo. E para aprender matemática é preciso ter foco.

Outra coisa, que não é nenhum segredo, é que se queremos que nossos filhos se interessem por algo, nós, os adultos, os pais e professores, também devemos nos interessar. Claro, é difícil, estamos sempre ocupados, mas precisamos achar tempo. Matemática não é o tipo de assunto que dá para aprender apenas assistindo ao YouTube, tem que colocar a mão na massa.

A matemática brasileira está se tornando muito forte. É um exemplo interessante para outros países de como cultivar uma geração de matemáticos talentosos

Maryna Viazovska

matemática e pesquisadora

Como manter seus alunos motivados e fazê-los enxergar essa beleza da matemática? Lecionar é uma atividade muito recompensadora, mas que ao mesmo tempo requer muita energia. Acho que não funciona de outro modo: a menos que você esteja realmente empolgada ao falar sobre algum tema, você não consegue fazer com que outras pessoas se empolguem. Então eu tenho que estar empolgada.

Às vezes eu tenho que dar a mesma disciplina diversas vezes, mas eu sempre me preparo novamente. A maior parte do sucesso advém da energia que eu coloco nessas aulas.

Outra coisa que notei, durante a pandemia de Covid-19, é que o trabalho em equipe é extremamente importante. Quando não existe a possibilidade de se encontrar com as pessoas para discutir os problemas, há um impacto real —não necessariamente nas notas, mas na qualidade das soluções.

Muitas provas eram intrincadas, iam pelos caminhos mais difíceis. Mas quando os estudantes conversam entre si, geralmente chegam juntos à solução mais limpa e elegante. Mesmo a matemática parecendo ser uma atividade individual, esse tipo de comunicação é extremamente importante.

Já esteve no Brasil? O que acha sobre o panorama matemático do país? Estive em 2018, quando fui ao Congresso Internacional de Matemáticos, no Rio, onde fiquei por uma semana. Também passei alguns dias em São Paulo. No Impa (Instituto de Matemática Pura e Aplicada), há um excelente grupo de jovens matemáticos com trabalhos também em análise, Teoria dos Números e otimização.

O Brasil também tem o medalhista Fields Artur Avila, que também trabalha aqui na Suíça —eu em Lausanne e ele, em Zurique. A matemática brasileira está se tornando muito forte. É um exemplo interessante para outros países de como cultivar uma geração de matemáticos talentosos.

Os ganhadores da Medalha Fields, da esq. para a dir.: Maryna Viazovska, o britânico James Maynard, o americano-sul-coreano June Huh e o francês Hugo Duminil-Copin - Vesa Moilanen/Lehtikuva -5.jul.22/AFP

Como a guerra na Ucrânia tem afetado você e sua família? Penso que todo ucranino foi foi afetado. Meus pais e meus avós estão lá e, infelizmente, tudo se tornou uma zona de guerra. A situação no leste é pior, mas houve mísseis em Kiev no distrito em que cresci, onde estão amigos, vizinhos e outras pessoas que conheço desde a infância. É uma situação muito difícil.

A comunidade científica internacional tem auxiliado muito a Ucrânia neste período. Eu gostaria de agradecer a quem ajudou os ucranianos, os cientistas ucranianos, os refugiados…

A matemática brasileira está se tornando muito forte. É um exemplo interessante para outros países de como cultivar uma geração de matemáticos talentosos

Maryna Viazovska

pesquisadora

O que mudou na sua vida após ganhar a Medalha Fields? Acho que você ganha mais trabalho [risos]. Existe muita atenção, e isso é muito bom. Mas também o número de responsabilidades aumenta. Uma coisa um tanto paradoxal é que fica mais difícil achar tempo para se dedicar à matemática. Mas tenho brigado contra isso, já que não penso que seja justo [risos].

E a sra. é apenas a segunda mulher a receber a Medalha Fields. Como pensa que isso pode impactar a vida de garotas que se interessam por matemática e ciências? Entendo que servir de exemplo é algo que pode ajudar. Além disso, é fundamental que haja suporte e encorajamento da família e das pessoas que tenham importância na vida das garotas e das jovens mulheres.

O talento é uniformemente distribuído entre gêneros, etnias, nacionalidades… Para mim, isso não é um teorema que eu tenha que provar —é um axioma, um princípio. Quando vemos que os números não estão batendo, ou seja, que essas pessoas não estão adequadamente representadas, significa que temos um problema que, como sociedade, devemos trabalhar para reverter.


Raio-X

Maryna Viazovska, 38

Ucraniana está entre os vencedores da última edição da Medalha Fields, prêmio matemático de maior prestígio, por resolver o problema de empacotamento de esferas em dimensão 8, sendo apenas a segunda mulher a receber a láurea. Formou-se em matemática na Universidade de Kiev (2005), realizou o mestrado na Universidade Técnica de Kaiserslautern, na Alemanha (2007), e o doutorado na Universidade de Bonn e no Max Planck Institute (2013), no mesmo país. Desde 2017 trabalha na EPFL (Escola Politécnica Federal de Lausanne), na Suíça, onde hoje é professora titular.

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