No discurso de agradecimento pelo Oscar de melhor filme, Daniel Kwan, da dupla de diretores de "Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo", disse que o mundo está mudando rápido demais e que é preciso correr para acompanhá-lo.
Sua fala revela a comunhão com uma ideia de arte que, apesar de não ser nova, vem se tornando cada vez mais consensual e inquestionável, em parte pela hipertrofia sociológica do discurso estético e, em parte, o que pode parecer contraditório, por melhor se adequar às demandas do mercado, pondo-se em sintonia com a "velocidade do seu tempo"
Ninguém diz que a nouvelle vague corria atrás do seu tempo, embora as mudanças sociais da época não fossem menos velozes que as atuais. O cinema era parte e agente crítico dessas mudanças.
É uma diferença marcante e não simples idealismo: para os cineastas da nouvelle vague, o cinema não estava reduzido à confirmação do que existia, do que era reconhecível por todos e precisava ser representado, como se ação e experiência, por mais novas que fossem, estivessem sempre no passado e o cinema correndo atrás delas.
A diferença pode parecer frívola, mas é o que permite entender o lugar e o papel relativamente convencional e conformista de "Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo". Por trás da forma aparentemente nova e veloz, o que se representa é um clichê. Como escreveu Inácio Araújo aqui na Folha, a narrativa em multiverso serve de veículo para o velho melodrama. A novidade tem a ver com o lugar da família.
No clássico "A Cultura do Narcisismo" (1979, recém-publicado pela Fósforo), o historiador e crítico cultural Christopher Lasch vê na vida em família um antídoto ao negacionismo de uma sociedade desesperadamente consumista, cada vez mais incapaz de lidar com suas frustrações, com sua finitude e com as contrariedades do real. No capitalismo tardio e faustiano, a tecnologia surge ao mesmo tempo como derradeira aposta do sonho de domínio da natureza e golpe de misericórdia do homem contra si mesmo.
Lasch mostra como a espiritualidade, no caso o esoterismo new age do final do século 20, vai se combinar com a tecnologia avançada, dando sustentação à negação dos limites do real.
É o que o antropólogo francês Philippe Descola chama de "analogismo", uma concepção de mundo, característica tanto da China confucionista como da Idade Média no Ocidente, em que as coisas mais desconexas e disparatadas se combinam e passam a funcionar dentro de uma lógica coercitiva e circular, uma cosmologia fechada que explica tudo sem explicar nada.
Sistemas "analogistas" incluem o I Ching, a astrologia e, por que não?, o multiverso de "Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo", coreografia de tempos e mundos paralelos e comunicantes onde o indivíduo desamparado busca refúgio contra os contratempos do real.
Para Lasch, a vida em família, além do amor e do trabalho, permitiria um contato com o real, protegendo ao mesmo tempo contra o desamparo e o terror do capitalismo tardio e das expectativas insustentáveis da cultura do narcisismo. É no que de alguma forma "Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo" também parece apostar com a equivalência "analogista" entre família e multiverso, conto hollywoodiano de inclusão, alegoria do amor e da resiliência familiar como unidade e salvação.
O tempo, entretanto, tem mostrado o contrário, se for mesmo para correr atrás dele. E nem precisa correr muito. Basta acompanhar como o negacionismo bolsonarista, entre outras autocracias pelo mundo, investiu no clichê inercial da família em oposição ao Estado (o indivíduo precarizado e a pequena empresa familiar reagindo pela força ao estorvo burocrático dos impostos, como representado no filme) para vender um mundo de fantasia no qual a violência tem um papel central.
É um mundo que se sustenta nos dogmas de uma religião que já não precisa eliminar a matéria, como o gnosticismo new age, para apagar a verdade e as contradições do real. A integração passa a ser a norma, nada deve existir fora dela. Nem crítica, nem outro. Como no multiverso, nada lhe escapa, nada é exterior. Deus acima de todos, pela força.
A família já não é contraponto ao negacionismo, como queria Lasch. Tornou-se elemento de uma lógica que explica tudo sem poder ser explicada, porque não há razão nem olhar exterior a sua violência. Entre nós, isso se traduz em milícias, associação de grupos religiosos e armados. Correr atrás do seu tempo, nesse caso, talvez não resulte em nada muito além da reprodução claustrofóbica do horror.
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