Casos do Acaso

Série em parceria entre a Folha e a Conspiração Filmes. Narrativas enviadas pelos leitores poderão se transformar em episódios audiovisuais criados pela produtora. Veja como participar no fim do texto

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Casos do Acaso

Sem saber, casal brasileiro visitou um nazista em Buenos Aires

Anos depois, descobriram que estiveram na casa de Adolf Eichmann, o carrasco responsável por enviar prisioneiros judeus para campos de concentração

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Irene Nogueira de Rezende

Doutora em História pela USP, mora em São Paulo

Porto de Marselha, um dia de outubro do ano de 1950.

O casal brasileiro Milton e Leila embarcam no transatlântico francês Campana, com destino a Buenos Aires e escalas nos portos de Gênova, na Itália, e no Rio de Janeiro, onde vai desembarcar. Os dois encerravam uma longa viagem por vários países europeus. Era a comemoração de cinco anos de casados.

Milton Gomes, médico psiquiatra, e Leila, dona de casa, moravam em Belo Horizonte. Ambos gostavam de música, boas leituras e falavam francês fluentemente, como era comum, no Brasil, entre as classes mais favorecidas, na primeira metade do século XX.

Nessa época, um navio levava 15 dias para cruzar o Atlântico, tempo preenchido com diversão para os passageiros, como a cerimônia de passagem do Equador, bailes, jantares e jogos.

Certa tarde, Leila sentou-se ao piano do salão do navio e tocou uma sonata de Chopin. Aproximou-se dela uma jovem senhora, falando francês. Apresentou-se como Vera, austríaca, e a elogiou efusivamente pela performance ao piano. As duas passaram a se encontrar frequentemente no convés. Conversavam sobre pintura, música e cinema. Foram ficando mais chegadas. Uma noite, Vera convidou Leila e Milton para jantarem junto com seu marido.

Durante a refeição, em que todos se comunicavam em francês, o marido de Vera se apresentou como o italiano Ricardo, que trabalhava como representante de uma firma austríaca em Buenos Aires, onde residiam. Milton achou Ricardo um pouco arredio e Vera, mais extrovertida.

Ao longo da viagem, Leila comentou com Vera seus planos de uma próxima viagem a Buenos Aires. Combinaram um encontro. E ele aconteceu no início de 1952.

De férias em Buenos Aires, Leila entrou em contato com Vera, que foi até o hotel para um chá. Conversa vai, conversa vem, e surgiu o convite de Vera para um lanche em sua casa. Convite logo aceito, porque Leila estava com saudades dos papos agradáveis com a amiga austríaca. No dia marcado, foram de táxi ao subúrbio de Buenos Aires onde morava o casal.

Tocaram a campainha e aguardaram. Demoraram a atender a porta, para estranheza de Milton, sempre muito cioso de pontualidade. O lanche transcorreu tranquilamente, com conversas sobre o Brasil e outras generalidades. Ao sair, Milton comentou com a mulher que a biblioteca de Ricardo era toda em alemão, lembrando que ele tinha se apresentado como cidadão italiano.

Milton e Leila voltaram para Belo Horizonte, retomaram suas rotinas e, com o tempo, perderam o contato com o casal amigo de Buenos Aires. Mas, oito anos depois, certo dia de maio de 1960, ao abrir o jornal durante o café da manhã, Milton reconheceu, numa fotografia, o italiano companheiro do navio.

Foto antiga, em preto e branco, de Adolf Eichmann, vestindo uma camisa de botão. Ele é um homem careca, com cabelos apenas nas laterais da cabeça e tem a testa franzida
Adolf Eichmann, criminoso nazista e homem-chave da Solução Final para o extermínio dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial. - AFP

Só que não era Ricardo o seu nome — e, sim, Adolf Eichmann, o carrasco nazista responsável por enviar de trem os prisioneiros judeus para campos de concentração. A notícia contava como o Mossad (serviço secreto israelense) conseguiu localizá-lo em Buenos Aires e levá-lo, clandestinamente, para Israel.

Passado o impacto da descoberta, Milton e Leila resolveram não comentar o caso com ninguém, discretos que eram.

Julgado e condenado à morte por enforcamento, o aliado de Hitler e o processo contra ele inspiraram Hannah Arendt a escrever o seu clássico ensaio sobre a banalidade do mal: “Eichmann em Jerusalém”.

Essa história me foi contada, muitos anos depois, pelo próprio Dr. Milton Gomes em uma de suas estadias em São Paulo, em casa de sua filha Suzana. Ele faleceu em 12 de outubro de 2014, aos 97 anos.

Para participar da série Casos do Acaso, o leitor deve enviar seu relato para o email casosdoacaso@grupofolha.com.br. Os textos devem ter, no máximo, 5.000 caracteres com espaços e precisam ser inéditos, não podem ter sido publicados em site, blog ou redes sociais. As histórias têm que ser reais e o autor não deve utilizar pseudônimo ou criar fatos ou personagens fictícios.

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