Clóvis Rossi

Repórter especial, foi membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.

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Clóvis Rossi

Os autoritários e o instinto do escorpião

O príncipe saudita mostra que eles acabam sempre picando

De costas e vestido de terno, Pompeo cumprimenta Mohammed bin Salman, que aparece de frente com a túnica e o adorno de cabeça quadriculado vermelho e branco da realeza saudita. Na parede ao fundo, uma cadeira e um quadro com uma foto do rei Salman.
O secretário de Estado americano, Mike Pompeo, é recebido pelo príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman, em Riad - Leah Millis - 16.out.18/AFP

Em novembro de 2017, Thomas Friedman, icônico colunista de The New York Times, ficou quatro horas conversando com o príncipe Mohammed bin Salman (ou MBS), o governante de facto da Arábia Saudita.

Saiu tão entusiasmado que seu relato do encontro produziu duas frases hiperbólicas: na primeira, dizia que MBS estava conduzindo no seu país "o mais significativo processo de reformas em andamento no Oriente Médio".

Na segunda, acrescentava que as reformas do príncipe "não mudarão apenas o caráter da Arábia Saudita mas também a voz do islã ao redor do mundo".

Confesso que também fiquei fascinado com este segundo aspecto —ou seja, com o anúncio de MBS a Friedman de que cortaria as asas do chamado wahhabismo, uma versão particularmente radical do islã, criado nos anos 1740 por Muhammad ibn Abd al-Wahhab.

A casa de Saud, dinastia que fundou a Arábia Saudita e a governa até hoje, abraçou o wahhabismo. As interpretações radicais da corrente forneceram o verniz teológico para o fanatismo de grupos terroristas como o Estado Islâmico.

Mudar a voz do islã, como prometia MBS, era, portanto, o passo inicial para desconstruir o fanatismo e, em um prazo indefinido, acabar com ou pelo menos minimizar essa praga universal que é o terrorismo.

Friedman, em sua coluna desta quarta (17) no New York Times, diz que essa expectativa era (e continua sendo) também a dele. Escreve que "a reforma religiosa islâmica só pode vir da Arábia Saudita, que abriga as duas cidades mais sagradas do islã, Meca e Medina".

O problema é que o assassinato do jornalista Jamal Khashoggi destruiu por completo a fé que se pudesse ter nas reformas liberalizantes de MBS e, por extensão, na mudança de voz do islã wahhabista.

O que emergiu, ao contrário, é o que a Al Jazeera, emissora árabe (do Qatar), define como "o lado sombrio" da Arábia Saudita de MBS. Emergiu também a hipocrisia do Ocidente no trato com um regime despótico desde o nascimento.

Escreve, por exemplo, Mustafa Akyol, pesquisador-sênior do liberal Cato Institute: o caso Khashoggi "desmascarou o feio despotismo por trás da imagem reformista do príncipe Mohammed bin Salman".

Reforça Judah Grunstein, editor-chefe da World Politics Review, pondo o acento na hipocrisia: "O teatro de indignação em exibição em Washington e nas diretorias das corporações é tão crível quanto as negativas sauditas dos últimos 15 dias sobre o fato de que Khashoggi deixara vivo o consulado e que a liderança saudita não tivera nenhuma interferência em sua morte".

Ao mencionar as corporações, Grunstein está se referindo às empresas que decidiram ausentar-se do seminário chamado "Davos no deserto", organizado pelo príncipe —fato analisado com a competência habitual por Flávia Mantovani nesta Folha na segunda (15).

O que fica evidente é que a tentação autoritária é como o instinto do escorpião na velha história que narra como ele pediu ao elefante carona para atravessar o rio. Prometeu não picar o elefante, alegando que, se o fizesse, ambos afundariam e morreriam.

Não obstante, no meio do rio, tascou a picada e desculpou-se: "É meu instinto". Não convém jamais minimizar os riscos inerentes ao instinto dos autoritários de plantão.

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