No começo da carreira, com os bolsos furados, Jean-Paul Belmondo costumava roubar o leite entregue na porta das casas em Paris. Certa vez foi surpreendido pelos donos e se escondeu a tempo. Era o casal Sartre-Beauvoir.
Meses depois, seu rosto de boxeur romântico seria captado pela câmera trepidante de "Acossado". O filme usava referências do policial clássico no ritmo quebrado do jazz e trazia diálogos irreverentes com certa dose de existencialismo —sem leite.
"Uma Mulher é uma Mulher", de 1961, tinha pontos em comum: o mesmo diretor, Godard, a mesma inventividade inspiradora, mas no lugar do filme de gângster, dessa vez tratava-se de reescrever as regras do musical e da comédia.
Os atores brincam entre si, com bicicletas, livros e a câmera, que por sua vez brinca em cada cena. Como o malandro Alfred, Belmondo está na própria pele. Anna Karina enche a tela de sentimentos desencontrados e desafia o espectador ao divertido jogo de tentar acompanhá-la.
Ela é uma cantora de strip-tease que quer ter um filho, mas não consegue convencer o namorado (Jean-Claude Brially). Terceira ponta do triângulo, Alfred a convida para sair. Vão a um café e ela pede um Dubonnet. Ansioso por agradá-la, ele pega a garrafa inteira da mão do barman. (Pouco antes, Jeanne Moreau aparece numa pontinha, também tomando Dubonnet. Piscando para a sala de cinema, falam sobre "Jules e Jim").
Ele vai até a jukebox e põe uma música do Charles Aznavour. É "Tu t'laisse aller", número um na França à época. Godard deixa a canção rolar até o fim. Na letra, o marido enche a cara para ganhar coragem e dizer as piores à esposa. É uma versão dramática do que os dois conversam na mesa. Como distinguir a verdade da mentira? Para não deixar dúvidas, a garrafa é esvaziada.
Curiosamente, há um conto de John Cheever no qual uma professora é descrita assim: "Ela não gosta de beber. Nas festas, toma polidamente um Dubonnet." Talvez cansada das máscaras da sociedade, ela decide atuar numa peça em que todos ficam nus. Descobre-se ao tirar a roupa. O marido não suporta a ideia, mas acaba participando de algum modo da experiência.
Em geral, o Dubonnet, um vinho aromatizado com ervas, é tomado assim, nu, ou com gelo. Foi criado a pedido do governo francês para suprir as tropas da Legião Estrangeira com quinino, remédio para malária. Isso em 1846. Virou um dos aperitivos nacionais da Gália. Alguns dos cartazes que o promoviam foram pintados por Toulouse-Lautrec.
O quinino vem dos Andes peruanos, mais precisamente da casca da árvore Quina, cultivada pelos índios quíchua. Foi disputado a tapa e tiros pelos europeus que morriam com a malária. Os ingleses chegaram a comprá-lo de nazistas corruptos na guerra. No castelo de Buckingham, a Rainha Mãe tomava um coquetel de Dubonnet todos os dias, costume que passou para a filha, Elizabeth 2º.
William Burroughs e Jack Kerouac estrearam na literatura juntos. O livro "E os Hipopótamos Foram Cozidos em Seus Tanques" também menciona a poção vermelha, em meio a assassinato, drogas e outras bebidas. Menos beat, Barbra Streisand, no papel de uma militante comunista, seduz Robert Redford com um Dubonnet na mão no filme "Nosso Amor de Ontem".
Um brinde ao Pierrot le Fou, ao Michel Poiccard, àquele que andava nos telhados de Paris.
Dubonnet Cocktail
- 45 ml de Dubonnet (na falta, use vermute doce)
- 45 ml de gim
Passo a passo
Mexa os ingredientes com gelo e coe para um copo old-fashioned com gelo. Dê uma espirrada de limão siciliano e deixe a casca no copo.
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