O escritor Kenzaburo Oe era um sujeito de opiniões fortes. Vencedor do Nobel de Literatura em 1994, dizia gostar de beber, mas não em bares. "É para evitar brigas", explicou numa entrevista à Paris Review.
Morto recentemente, ele acumulou polêmicas no Japão —daí o receio quanto aos izakayas (templos do happy hour). Seu desprezo pela instituição do imperador era uma delas. Chegou a recusar a Ordem de Cultura do país por isso.
Também fez inimigos ao denunciar o suicídio em massa ocorrido em Okinawa, no final da Segunda Guerra. Segundo ele, centenas de pessoas enfiaram espadas na própria barriga, explodiram-se com granadas ou pularam de montanhas, seguindo ordens de oficiais militares.
Oe ainda é odiado por nacionalistas de extrema direita depois que escreveu um livro contando a história do assassinato do presidente do Partido Socialista japonês, cometido por um jovem de 17 anos, em 1960.
Com esse currículo, certamente detestaria o covarde entocado na Flórida.
Kissinger, desafeto ideológico, descreveu seu sorriso como "diabólico", o que deve ter divertido o escritor. Não à toa, entre seus amigos estavam os pensadores e militantes de esquerda Noam Chomsky e Edward Said.
Escreveu muito sobre o filho com deficiência, que superou limitações sérias, tornando-se um grande compositor e intérprete de música clássica. O livro "Uma Questão Pessoal", que trata dos conflitos diante de seu nascimento, é de abalar estruturas. Vive na minha cabeceira.
A devastação de Hiroshima é outro tema recorrente em sua obra. Oe sempre combateu o armamento nuclear e o uso pacífico de energia atômica, como se viu no desastre em Fukushima, quando apelou ao primeiro-ministro para que não fossem mais construídas usinas nucleares.
Autointitulado "um anarquista que gosta da democracia", apreciava um bom uísque e muito provavelmente shochu, já que é a bebida alcoólica mais consumida no Japão. Com uma história de mais de 500 anos, o shochu era bebido pelos samurais, ancestrais diretos de Oe. Feito à base de arroz, batata-doce, açúcar mascavo, trigo ou centeio, varia de gradação alcoólica, podendo ir de 25% a 35%. Há versões mais fortes, como o awamori, destilado de arroz produzido apenas na mencionada Okinawa, que chega a 43%, lembrando um pouco a tequila.
Tradicionalmente o shochu é tomado puro, com gelo, quente ou diluído em água, mas as novas gerações descobriram as possibilidades em coquetéis e nos drinques enlatados, gaseificados e com sabores de frutas, os chu-hai.
Pude experimentar essa versatilidade no segundo evento da Shochu Academy no Brasil. No exercício de popularizar a bebida por aqui, foram preparadas releituras de drinques clássicos americanos dos tempos pré-Lei Seca, a cargo do consultor de mixologia Rodolfo Bob. O sodawari, por exemplo, é um nipônico highball. Já o kokoronation é a ponte entre o milenar shochu e o vintage coronation.
"Kokoro" vem de "coração"ou "espírito", mas a palavra também pode significar "consciência", "alma" ou "psique".
A seu modo, Kenzaburo Oe, leitor de Blake e Baudelaire, também buscava fazer pontes transculturais. Sem coroação, mas com muito kokoro.
A ele, pois, kampai!
KOKORONATION (Receita de @rodolfobob)
60 ml de shochu tensho
25 ml de jerez fino
5 ml de jerez oloroso
5 ml de St.Germain
5 gotas de japanese umami bitter
Mexa os ingredientes com gelo e coe para uma taça Nick & Nora gelada. Aromatize com uma casca de laranja-bahia.
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