Depois de alguns anos de descrédito da Lava Jato, certa desonestidade intelectual permanece grassando no debate público no país. Tenho lido algumas entrevistas dizendo que a Lava Jato foi anulada por "questões técnicas". Li isso na entrevista do escritor Vargas Llosa nesta Folha e em muitas outras mais.
Mas espera. Que "questões técnicas" são essas? Seria de menor importância a falta de provas da propriedade de um imóvel no Guarujá, em que pesem todas as instâncias e recursos que foram mobilizados na investigação? Aliás, a falta de provas nesse caso não é uma questão técnica, mas sim de mérito.
Ainda assim, seria algo irrelevante para a compreensão do caso a exibição pública de inúmeras mostras de comprometimento? São questionamentos importantes, afinal esse mesmo ex-magistrado assumiu o Ministério da Justiça do candidato que foi beneficiado pelo afastamento do adversário nas eleições.
Alguma iniciativa haveria de guardar para a história todas essas "questões técnicas". Haveria de registrar para a posteridade os julgamentos relâmpagos, o PowerPoint e as conduções coercitivas espetaculosas, a interceptação telefônica ilegal de escritórios de advocacia, entre tantos abusos.
Um museu que pudesse mapear de que forma delações eram obtidas de manhã, divulgadas à noite e descartadas no dia seguinte com o estrago feito.
Um lugar em que uma visita nos levasse a questionar se é um funcionamento sadio das instituições a prisão ilegal por 580 dias do principal candidato nas pesquisas, sem crime comprovado e com parcialidade descarada. De outro lado, um museu que relembre uma das mais emblemáticas ocupações da história recente do país, na porta da Polícia Federal de Curitiba.
A falta de consciência democrática é o que torna necessário dizer como é absurda a relação entre julgador e acusadores, que eram orientados sobre como e quando agir, sobre quem pegar, ainda que por filigranas jurídicas, ou quem não merecia ser melindrado. Isso não é justiça, mas sim uma trama, uma farsa, que difama a imagem do país pelo mundo, fora todos os prejuízos internos causados.
Do ponto de vista da economia, em face do discurso de que valores teriam sido restituídos ao erário, pergunta-se qual foi o impacto na indústria nacional dessa operação. Digo em termos de geração de desemprego e perda de potencial de mercado no cenário internacional. Ou seja, restituiu mesmo?
É necessário qualificar o debate para afastar as fórmulas rasas. E um espaço no qual isso possa ser verificado é fundamental. Do ponto de vista moral, no combate à corrupção, questiona-se se, de fato, essa operação fez alguma coisa positiva nesse sentido.
A última vez que eu soube, o governo presidencial beneficiado pelo impeachment, como também o beneficiado diretamente nas eleições passadas, não era modelo de moralidade pública em lugar nenhum do mundo.
Como também não é exemplo a forma pela qual o Ministério Público Federal pretendeu assumir um fundo bilionário ao arrepio da legislação brasileira. Isso não é uma "questão técnica", é um fato grave. É necessário um local que seja capaz de compilar quantos profissionais dessa instituição foram afastados e ou exonerados por condutas antiéticas.
Lawfare é como tem sido denominado o uso do direito, da mídia e da política como uma arma de guerra. E é necessário refletir sobre os efeitos de uma imprensa monotemática por anos, que se deixou servir como divulgadora acrítica de notas oficiais de instituições e associações de classe do sistema de justiça.
Inaugurado neste mês, o Museu da Lava Jato é o centro de pesquisa e memória com fotos, documentos, vídeos, um amplo acervo sobre a operação. Foram 14 profissionais das mais diversas áreas que catalogaram e sistematizaram o espaço, que começa online, mas que terá sua sede própria em 2023.
Idealizado pelo advogado Wilson Ramos Filho, o Xixo, o Museu já pode ser visitado pelo endereço museudalavajato.com.br.
"Lembrar para não repetir. Este é o foco principal do Museu da Lava Jato, a exemplo de tantos outros museus que buscam institucionalizar a memória de períodos de trevas pelos quais passaram determinadas sociedades em determinados períodos históricos", explica Xixo.
Se não tivermos cuidado, o maior escândalo das instituições de Justiça da história vira uma "questão técnica" no país sem memória. Avesso a eufemismos, o Museu da Lava Jato é muito bem-vindo.
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