Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Assistir ao voo final de Rosa Weber foi como sair de um longo inverno

Ministra brindou o país com um voto histórico sobre a descriminalização do aborto

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As mulheres historicamente precisaram de muita estratégia para se manterem em ambientes hostis à sua liberdade. Em razão de estarem em menor número em espaços de poder e decisão, tornaram-se especialistas em uma posição de defesa de direitos, frente à perene voracidade patriarcal em controlar seus corpos e ideias.

Em nome de todas as que resistem, quero saudar aquelas que contrariam os ditados populares e se tornam a andorinha que traz o verão. Trata-se de um fenômeno inspirador que acontece nas frestas da história, em que oportunidades se abrem a convite de corajosas aves que trazem consigo o anúncio do Sol e da prosperidade.

Em condições únicas e devidamente aproveitadas pela ousadia, sabedoria e integridade, há casos de mulheres que, mesmo em menor número (por vezes a única no ambiente patriarcal), lançam uma ação transformadora em defesa de toda a coletividade e promovem mudanças.

No caso da aposentadoria da ministra Rosa Weber, que deixa nessa semana a presidência do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, em razão dos seus 75 anos, assistir seu voo final no cargo que exerceu exemplarmente foi como sair de um longo inverno.

Ao centro da ilustração está a figura de Rosa Weber, ela é uma mulher branca, loira de cabelos na altura dos ombros, usa brincos de pérola, uma toga preta e sua mão direita está sobre o peito/coração.
ilustração de Aline Souza para coluna de Djamila Ribeiro de 28 de setembro de 2023 - Aline Souza

A ministra brindou o país com um voto histórico sobre a descriminalização do aborto. Foi bem no finalzinho de seu mandato, quando ainda tinha poderes sobre a pauta e já havia regulado tempo para pedido de vista dos colegas, outrora infinito. Como uma luz em meio a tanta desinformação, começou o julgamento de consequências para milhões de brasileiras.

"[Nós mulheres] não tivemos como participar ativamente da deliberação sobre questão que nos é particular, que diz respeito ao fato comum da vida reprodutiva da mulher, mais que isso, que fala sobre o aspecto nuclear da conformação da sua autodeterminação, que é o projeto da maternidade e sua conciliação com todos as outras dimensões do projeto de vida digna", afirmou.

Graças a Rosa Weber, teremos um olhar constitucional sobre o tema, que infelizmente é muitas vezes tratado por uma ótica religiosa e sensacionalista. Claro que todas as pessoas têm o direito de professar sua fé, porém o aborto é um assunto de impacto concreto na vida das mulheres, uma questão de saúde pública, e sua criminalização não impede que ele aconteça, apenas acentua as violências sobre as mais pobres, de maioria negra.

Como afirmou a ministra: "o aborto inseguro consta como uma das principais causas de impacto no delineamento sanitário do quadro da mortalidade materna, como atestam as estatísticas apresentadas na audiência pública, em particular pelo Ministério da Saúde".

Um olhar qualificado produziu mudanças em outros países. Na América Latina, México e Colômbia descriminalizaram o aborto no Judiciário. Nossos vizinhos Argentina e Uruguai o fizeram no Congresso. Já na Nicarágua, uma ditadura, a proibição ao aborto é total, inclusive em casos de estupro. Precisamos, como sociedade brasileira, rechaçar a hipocrisia sobre o tema e encará-lo com honestidade, nos termos do brilhante voto destacado.

Junto a Rosa, caminharam muitas mulheres. Assino embaixo das palavras de Betty Milan a esta Folha quando disse que a ministra entrou na trilha de Simone Veil, que, nos anos 70, fez um verão na França, onde era ministra da Saúde, ao discursar na Assembleia em favor da lei do aborto, em vigor até os dias de hoje. Ambas mudaram o curso da história com inteligência e coragem.

Seu legado transcende esse julgamento. Como afirmou meu colega de jornal, o jurista Conrado Hübner Mendes, a ministra foi vital para pautar a superação no STF do marco temporal, "tese" que arriscava o bem-estar dos povos indígenas e o cuidado ao meio ambiente. Atuou também para pautar e levar adiante a descriminalização do porte de drogas, um julgamento que estava parado por anos e causa inúmeras injustiças à população negra.

Conrado lista ainda a resistência à insanidade do 8 de Janeiro, a instituição de medidas de equidade de gênero na composição da segunda instância do Poder Judiciário e o respeito aos direitos trabalhistas como alguns dos avanços promovidos na sua gestão.

Nessas palavras finais, quero agradecer e parabenizar a ministra pela sua trajetória. Em honra a seu legado, esperamos que sua sucessão esteja à altura, responsabilidade que está nas mãos de um governo que precisa subir a rampa do Planalto, e também do STF, com a diversidade que o elegeu.

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