Flavia Lima

Repórter especializada em economia, é formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. Foi ombudsman da Folha de maio de 2019 a maio de 2021.

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Flavia Lima

Uma satisfação para Ágatha

Ao não dar peso merecido aos fatos, o jornal alimenta a dor, mas não a reflexão

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A notícia tem peso e esse peso é resultado de algumas forças.

Há a importância que deriva do acontecimento e a relevância que o jornal confere aos fatos, a partir do modo como expõe seus desdobramentos e os acomoda em suas páginas.

O leitor sabe disso. Muitos confiam nesse julgamento ao entregar nas mãos dos jornais a curadoria da notícia.

Essa hierarquização não só ajuda o leitorado a refletir sobre o noticiário, mas influencia o próprio leitor na decisão do que é importante.

Ilustração de pequenas casinhas em tons de verde, vermelho e branco. Ao fundo, as letras ASDFGH aparecem atrás de imitação de papel rasgado
Carvall

Pois bem, na sexta-feira (20) à noite, Ágatha Vitória Sales Félix, 8, foi baleada no Complexo do Alemão—a quinta criança morta nessas condições no Rio de Janeiro só neste ano.

As redes sociais gritaram primeiro. Durante o sábado (21), eram muitas as postagens de lamento ante o ocorrido.No domingo (22), os jornais repercutiram a morte da menina sob a perspectiva da tragédia maior que se abate sobre o Rio de Janeiro.

A partir da fala de algumas autoridades, os jornais trouxeram, no começo da semana, um material mais amplo fazendo a conexão entre o ocorrido e o debate sobre mudanças na política de segurança pública avaliadas pelo Congresso.

Foi aí que a morte de Ágatha ganhou a foto da primeira página da Folha e um título forte (“Caso Ágatha pode mudar o debate sobre punição a PM”), que perdeu o posto de manchete do jornal para questões que envolvem o Orçamento para a saúde.

A Folha perdeu uma grande oportunidade.Fez uma cobertura correta, um editorial sobre o assunto. Mas deixou de mostrar que prioriza um problema de interesse público, associado à vida e ao destino de parcelas expressivas da população e que de certa forma influencia as discussões sobre a principal agenda do governo: o endurecimento formal das regras de segurança pública.

Tanto é que, na quarta-feira (25), pressionados pelos acontecimentos, os deputados que analisam o chamado ‘pacote anticrime’ do ministro Sergio Moro rejeitaram a proposta que livraria de punição agentes que cometessem excessos sob a alegação de medo, surpresa ou violenta emoção—que já vinha sendo posta em xeque.

Para a Folha, escolher levar o caso à manchete significaria enviar um importante sinal em termos de prioridades.

A imprensa se apresenta como um espaço de discussão em que coabitam opiniões diversas, mas, por sua força, também indica o que é importante numa sociedade marcada por conflitos.

Ainda que ela tenha perdido espaço para as redes sociais, o fato é que, no debate público, o que diz um jornal como a Folha tem relevância e efeitos sobre a tomada de decisões.

A morte de Ághata não foi só uma tragédia particular, excepcional ou inexorável.

As estratégias de combate ao crime e a ação de forças de segurança nas grandes periferias do país vêm tirando a vida sobretudo da população negra e pobre há mais tempo do que gostaríamos de reconhecer.

Somadas a isso, políticas de segurança perversas, encampadas por governos, como o do Rio de Janeiro, fazem recrudescer um quadro de violência que já era muito ruim.

“Até quando seremos vítimas?”, postaram artistas nas redes sociais. Um dos aspectos da questão é justamente este: no fundo, não sentimos sermos “nós” os atingidos.

E a cobertura dos grandes jornais, ao exporem a tragédia sem dar nome a ela (os negócios em torno do crime, a desigualdade, o racismo), alimenta bons sentimentos —mas não a reflexão.  

Quando a imprensa lê pela chave da tragédia o que é, na verdade, parte da política de segurança brasileira, ela contribui para que a estratégia que produz essas mortes siga sendo vista como aceitável em nome de uma guerra ao tráfico ou à bandidagem que não dá —nem nunca deu—resultados.

Isso vale também para outras arbitrariedades, como as cometidas nos porões de supermercados, nas quais se busca responsabilizar seguranças privados, sem que nunca sejam questionadas as diretrizes dadas a esses funcionários pelos donos dos estabelecimentos.

A Folha não faz jornalismo com impacto apenas para o seu leitorado padrão.

Diz o Manual da Redação que o jornal ambiciona iluminar problemas e apontar falhas, além de questionar as autoridades públicas e poderes privados, promovendo os valores da democracia representativa e dos direitos humanos.

A maioria da população vive nas periferias e a cobertura do jornal ainda reflete essa periferização: relega a espaços menos nobres ou expõe de modo pouco contextualizado e articulado assuntos que afligem sobretudo essa parcela da sociedade.

À Folha cabe pautar um debate sério sobre o que leva uma sociedade a permitir que jovens morram por serem pobres, negros e terem nascido no lugar errado —e discutir o que fazer para resolver isso.

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