A última semana de outubro foi movimentada. Começou com um vídeo postado na conta do presidente Jair Bolsonaro em que ele se comparava a um leão ameaçado por hienas, representadas por instituições como o Supremo Tribunal Federal, partidos políticos e a imprensa.
Na terça (29), reportagem do Jornal Nacional confirmou o que parecia ser uma premonição.
A notícia vinculava Bolsonaro aos acusados de assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista dela, Anderson Gomes.
Segundo a reportagem da TV Globo, o porteiro do condomínio em que mora a família Bolsonaro disse à polícia não só que um dos acusados de matar a vereadora, horas antes do crime, pedira permissão de entrada, afirmando que ia à casa de Bolsonaro, como também que a voz de quem atendeu a ligação e concedeu a autorização era muito parecida com a do presidente.
Na quarta, porém, o Ministério Público veio a público dizer que o porteiro mentiu.
Houve erro ao dar a notícia?
A TV Globo poderia ter esperado um pouco mais para divulgar o caso. Poderia ter ido atrás do áudio ou vídeo da portaria do condomínio.
Mas o fato é que a emissora tinha em mãos a informação de que o porteiro havia dado dois depoimentos idênticos à polícia, além de uma planilha de controle do condomínio que indicava a procura pela casa da família do presidente.
É preciso lembrar que o JN também deu espaço ao contraditório ao sublinhar que, naquele dia de março de 2018, o presidente não estava no Rio, mas em Brasília. Portanto, não poderia ter respondido àquela chamada.
Logo, é difícil dizer que a emissora agiu fora dos padrões jornalísticos.
No caso da Folha, o jornal deu uma manchete com a apuração da Globo e acertou ao dar outra, no dia seguinte, com a informação de que a citação a Bolsonaro era falsa.
Ainda assim, o caso teve desdobramentos ruins para a já abalada credibilidade da imprensa—algo com que o próprio presidente parece contar.
Renovaram-se as acusações de viés na cobertura do governo. Num tom acima do normal até mesmo para os seus padrões, Bolsonaro chamou de “patifaria” a cobertura que a TV Globo faz de seu mandato, ameaçou não renovar a concessão da emissora e qualificou a imprensa de “porca”.
No fim da semana, voltou-se contra a Folha. Em entrevista à Bandeirantes disse que determinou o cancelamento das assinaturas do jornal mantidas pelo governo federal, deixando no ar ameaça velada às empresas que anunciam na Folha.
Bolsonaro não foi nem mesmo original.
À Fox News há duas semanas, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, indicou que cancelaria assinaturas do The New York Times e do The Washington Post.
A Folha não revela o impacto disso sobre a receita. A coluna apurou que, na sexta-feira (1º), as áreas de marketing e circulação se reuniram para tentar chegar a esse número.
O que assusta mesmo é que o presidente avança na intimidação da imprensa e os veículos de comunicação noticiam as falas dele sem grande reação.
A Globo emitiu nota dizendo lamentar que o presidente revele desconhecer a missão do jornalismo de qualidade e use termos injustos para insultar os que informam o público.
A Folha reiterou que lamenta mais uma atitude discriminatória do presidente contra o jornal e disse que vai seguir fazendo o jornalismo crítico e apartidário que a caracteriza.
Nesse imbróglio, alguns veículos se acham a salvo. Com relação aos outros, qual o limite a ser cruzado pelo governo para que seja publicado um editorial de primeira página condenando os ataques ou para que exijam, em conjunto, uma atitude mais respeitosa?
A imprensa parece ter normalizado o comportamento de Bolsonaro e de seus ministros —que parecem eternamente em campanha.
Mas é preciso se dar conta de que não há promessa de economia liberal que compense retrocessos democráticos.
Como já dito algumas vezes, o trabalho da imprensa é questionar e o do governo, de prestar contas à sociedade.
Goste-se dela ou não, a imprensa precisa seguir colocando em xeque os inúmeros buracos de casos como o do assassinato da vereadora carioca.
Pelo apurado, Ministério Público, Judiciário, o governo do Rio e o próprio presidente já conheciam a história do porteiro havia algum tempo.
O curioso é que ninguém saiba ainda quem é ele, por que disse o que disse, por que o documento corrobora o testemunho, por que teria mentido.
Nos tempos atuais, as instituições parecem alternar-se no papel de leão acossado —o que não é bom.
À imprensa cumpre lidar com um delicado equilíbrio: fazer o seu trabalho, que é questionar e cuidar da apuração jornalística, sem, evidentemente, se deixar intimidar.
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