Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Caminhão é o novo sonho de consumo de sertanejos, como mostra Zé Neto

Cantor que faz dupla com Cristiano tem uma conta no Instagram para ostentar seus veículos e apoiar caminhoneiros

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Um dos cantores mais famosos do mundo sertanejo, Zé Neto, da dupla com Cristiano, criou uma página no Instagram em janeiro deste ano para expor seu principal hobby. A página Chaaamanarodagem já tem 204 mil seguidores e versa sobre os caminhões do cantor.

Num vídeo postado em 28 de janeiro, Zé Neto mostrou a compra de um caminhão Volvo FH460 vermelho, um dos vários de sua frota. Segundo reportagens, ele custaria cerca de R$ 500 mil. Na loja onde fez merchandising, de dentro da cabine de seu novo xodó, Zé Neto disse: "Tem muito cantor famoso, muita gente no Brasil inteiro que sonha em ter uma Ferrari, uma Lamborghini, um carrão... Um sonho na minha vida era montar num trem desses aqui".

Fotografia representando um caminhão preto estacionado numa fazenda
Foto de um dos caminhões do cantor sertanejo Zé Neto, que faz dupla com Cristiano - @chaaamanarodagem/Instagram

Numa das fotos de seu Instagram, ele aparece de joelhos na frente do caminhão, em oração, agradecendo a Deus pelo objeto. O discurso de Zé Neto para os fãs de sua página é baseado na lógica hiperindividualista atual, muito comum tanto nas religiões que veem o consumo como sinal de vitória, como no discurso de autoajuda: "Obrigado, meu Deus, a todos os meus seguidores, todos os meus fãs, Deus abençoe a vida de cada um de vocês. Eu andava de caminhonete para puxar lavagem. Hoje eu estou montado num negócio desses aqui. Então acredite no teu sonho, se você é capaz".

Caminhões são sonhos novos para os sertanejos. Nos anos 1980 havia até a "rainha dos caminhoneiros", a cantora Sula Miranda. Mas suas músicas versavam mais sobre a solidão da mulher do caminhoneiro do que sobre caminhões propriamente.

O sonho de consumo da geração sertaneja dos anos 1990 era um carro esporte nacional. Zezé Di Camargo sonhava com um Ford Escort XR3, moda na época. Quando começou a ganhar dinheiro como compositor, em fins da década de 1980, comprou o seu: "Fui até uma loja de carros seminovos e vi um Escort L azulzinho. Sonhava em ter um XR3, um modelo mais incrementado, mas o dinheiro não dava. Comprei um bem mais simples, fui em outra loja e comprei o kit do XR3 —o aerofólio, os faróis de milha etc.— e montei um Escort XR3 falsificado", contou Zezé em obra autobiográfica lançada pela dupla.

Vinte anos depois, a geração do sertanejo universitário cantou carros importados em canções como "Camaro Amarelo", de Munhoz & Mariano , "Vem ni Mim, Dodge Ram", de Israel Novaes e "Audi TT", de Gabriel Valim, numa fase do gênero que ficou conhecida como "sertanejo ostentação" na primeira metade dos anos 2010.

Os bens de consumo desejados pelos sertanejos como forma de ostentar o sucesso estão aumentando de valor e tamanho. Zé Neto buscou se justificar: "Sempre fui apaixonado pela estrada e por caminhão. O primeiro caminhão que dirigi foi um Mercedes 1113 gaiola [para transporte de gado] e desde então a paixão por esse universo só aumentou. Depois de alguns anos, realizei o sonho de comprar meu primeiro caminhão, um Mercedes Atron 171".

Claro que, antes de Zé Neto, os sertanejos mais ricos possuíam caminhões. Mas nunca se via tamanho entusiasmo. Zé Neto posta na página do Instagram os incrementos que incorpora em seus caminhões como buzinas, aerofólios e rodas de alumínio. Numa foto do dia 10 de fevereiro, o caminhão aparece na garagem de sua casa, uma mansão em um condomínio fechado de São José do Rio Preto (SP), como se fosse um carro familiar.

Sua página no Instagram é usada para fazer merchandising de empresas ligadas ao ramo de caminhões, seja de acessórios, mecânicos ou mesmo de venda e revenda. Recentemente a página foi clonada, o que fez o cantor protestar.

Para além do interesse mercadológico, a Chaaamanarodagem serve para o cantor se posicionar politicamente ao lado dos motoristas. Zé Neto publicou um vídeo em 27 de março no qual discursa sentado na boleia de seu caminhão: "A gente tem que respeitar a classe dos caminhoneiros. O sabonete que você toma banho, a cama que você dorme, os móveis da sua casa, foram os caminhoneiros que trouxeram. Classe dos caminhoneiros: o que precisar de mim e do Cristiano, pode ter certeza! Logo vou fazer uma música em homenagem a vocês! Não é publicidade. É para o povo que está olhando ter mais respeito e admiração. Vamos abrir o olho, minha gente, para quem realmente faz o progresso acontecer. Minhas palmas para vocês. Vocês são heróis da estrada".

Desde a greve de maio de 2018, que paralisou o governo Michel Temer, os caminhoneiros tornaram-se alvos de discursos políticos. O candidato presidencial Ciro Gomes já apareceu dirigindo caminhão em propaganda política e já fez lives com representantes dos caminhoneiros. Bolsonaro tenta manter os laços com a classe que lhe ajudou no pleito daquele ano. De forma que a eleição de 2022 promete em relação à disputa pelo apoio dos caminhoneiros.

O lazer de Zé Neto não é apenas um hobby. Há alguns anos, a compra de um caminhão para curtição própria seria visto apenas como um ato excêntrico, mera ostentação. Hoje precisa ser politizado, justificado. No mundo engajado da internet, consumir sem culpa parece não ser mais possível. Ninguém pode parecer "alienado" ou ingênuo. É preciso sempre se posicionar, e todos os aspectos da vida devem ter uma justificativa muito comprometida. Curioso paradoxo: num mundo de consumo cada vez mais frívolo, até a compra mais pernóstica precisa ser endossada por um discurso legitimador.

No último 2 de maio, Zé Neto publicou mais um vídeo, desta vez contando a compra de um segundo caminhão Volvo, este amarelo. Novamente Deus, o público e o discurso de autoajuda serviram de álibi para o consumo extravagante.

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