Henrique Gomes

Físico, é doutor em gravidade quântica e doutorando em filosofia na Universidade Cambridge.

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Realidades paralelas revelam reais ameaças para a humanidade

Interpretação permite supor que outros mundos já foram destruídos por hecatombes nucleares

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Depois da Covid-19, dos confrontos entre policiais e manifestantes ao redor do mundo, dos relatórios da Nasa sobre óvnis e, agora, do anúncio de um míssil russo “destruidor de mundos” (vindo ao encalço do término de um acordo nuclear), fica claro que o roteirista está indeciso sobre como acabar com a história da humanidade.

Quem ri ri de nervoso, mas no fundo acredita que escaparemos desta sem maiores problemas, como escapamos de tantas outras antes. Por que a confiança? Seria o Homo sapiens uma espécie simplesmente sortuda? Uma das interpretações da mecânica quântica pode jogar luz na questão.

Nossa situação pode parecer ruim agora, mas na verdade a humanidade já passou bem mais perto da extinção. Desde que surgiu na África, há pelo menos 200 mil anos, o maior gargalo populacional da nossa história se deu cerca de 130 mil anos depois, quando a população total teria caído para algo entre 2.000 a 10 mil sobreviventes. Para se ter uma idéia, esse número é menor que o de habitantes de alguns condomínios no Brasil. Mesmo assim, descendemos todos desses sobreviventes.

Explosões durante exercício militar russo na Sibéria - Mladen Antonov - 13.set.2018/AFP

Desde então, em outras tantas ocasiões mais recentes, nossas chances podem ter parecido ainda menores. Durante a Guerra Fria, alguns incidentes chegaram a um fio de deflaglar o apocalipse nuclear. Entre falhas humanas e técnicas, passamos raspando em pelo menos treze ocasiões nesse período. Em uma das mais conhecidas, em 26 de setembro de 1983, um sistema de alerta perto de Moscou detectou o lançamento de um míssil nuclear balístico americano. Logo depois, detectou mais cinco mísseis.

Uma resposta nuclear russa nesse momento era praticamente inevitável, mas, convencido de que uma real ofensiva americana envolveria um número muito maior de mísseis, o oficial Stanislav Petrov se recusou a reconhecer a ameaça como legítima. E não parou por aí: conseguiu persuadir os seus superiores de que se tratava de um alarme falso, o que depois se confirmou.

O nome Stanislav Petrov deveria ser ensinado na escola e reconhecido por todos; seu busto deveria ser erguido em cada cidade. Mas não é. Por que não? Será que depois de tantos raspões passamos a acreditar que, se não fosse Stanislav, alguma outra coisa teria impedido o desastre? Estamos predestinados a sobreviver?

Depois de tanta sorte, alguns veem na religião a explicação e a fonte desse otimismo. Outros procuram respostas na ciência —onde elas são mais difíceis de encontrar. Mas em uma área entre a ciência e a religião, há uma possibilidade de explicação: o princípio antrópico. Ele diz, basicamente, que qualquer observação sobre o universo ao nosso redor tem de ser compatível com as condições que permitem a existência do próprio observador.

Por exemplo, não observamos uma expansão do Universo muito maior ou menor do que é —diz o princípio— porque seria incompatível com a nossa existência, já que o Universo se contrairia ou se diluiria rápido demais para a formação de sistemas solares.

Na versão científica, não é Deus que determina parâmetros do Universo propícios para a nossa existência. Não, nessa versão há uma infinitude de universos com diferentes constantes da natureza, distribuição de estrelas e planetas etc. Essa multiplicidade de universos é comumente chamada de multiverso. Na maioria dos universos do multiverso não há observadores, e, portanto, nada precisa ser explicado. Em outros, como o nosso, existimos e procuramos explicações do mundo ao redor.

Na minha opinião, a origem mais plausível para um multiverso é a mecânica quântica. Pois uma de suas interpretações mais populares, introduzida nos anos 1950 pelo físico Hugh Everett e chamada coloquialmente de “many-worlds” (muitos mundos), diz que há inúmeras realidades paralelas, que evoluem e interferem uma com as outras seguindo regras precisas. Aqui não precisaremos entender essas regras, basta saber que a cacofonia quântica de possíveis universos nos dá a matéria-prima para aplicarmos o princípio antrópico.

Se realmente houvesse muitos universos, e muitos dentre esses fossem parecidos com o nosso, seria possível que em alguns deles Stanislav Petrov não tenha convencido seus superiores. Não nos encontramos nesses universos porque ninguém sobreviveu para contar a história. Fomos sortudos? Sim e não: algumas cópias nossas faleceram, outras sobreviveram, e a história é contada por quem sobreviveu.

Esse viés do sobrevivente pode explicar porque nunca vimos uma hecatombe nuclear. Justamente por nunca termos observado eventos tão prováveis, o princípio antrópico sugere que estão acontecendo em outros “galhos” da realidade e que deveríamos investir todos os nossos recursos para evitar destino similar no futuro.

Essa conclusão pode parecer esquisita, mas já temos experiência com essa linha de argumento, em menor escala. Durante a Segunda Guerra Mundial, o matemático e estatístico Abraham Wald teve grande sucesso ao levar em consideração esse viés do sobrevivente.

Abraham foi contratado para minimizar perdas de bombardeiros para o fogo inimigo alemão. Ao examinar a distribuição de danos feitos à fuselagem das aeronaves que retornavam, ele chegou a uma recomendação contraintuitiva: que maior blindagem fosse adicionada às areas que haviam sido menos atingidas. A recomendação contradizia as conclusões anteriores dos oficiais do Exército, que pediam maior blindagem naquelas partes mais atingidas dos aviões que retornavam.

Porém, aplicando o princípio antrópico nessa pequena escala, é fácil entender o raciocínio de Wald: os militares só consideravam os aviões que retornavam de suas missões; os abatidos não eram analisados. Os buracos nos aviões que retornavam, então, representavam áreas nas quais um bombardeiro suportava os danos relativamente bem. Por essa lógica, as áreas intocadas da fuselagem eram provavelmente muito mais fatais à aeronave.

As várias recessões, guerras, pragas, etc. da nossa história são como os furos na fuselagem do avião que sobrevive. Temos confiança que como civilização superaremos esse tipo de dano. Agora, aqueles perigos que parecem tão prováveis —e que mesmo assim não observamos, dizem os muitos mundos da mecânica quântica e o princípio antrópico— são os realmente perigosos; os que já devem ter ceifado várias linhas alternativas do futuro da humanidade; aquelas sem um Stanislav, por exemplo.

À essa luz, nossa aparente maré de sorte não deve ser confiada, pois é nada mais do que isto: um sinal para nos blindarmos onde realmente importa.

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