Jorge Coli

Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

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Se eliminarmos estátuas que julgamos ofensivas, reformaremos o passado

Impulsos demolidores, justificáveis em efervescências coletivas, não deveriam fazer parte de um programa que se prolongue

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Antes da pandemia, lembro-me de sair com alívio de um cinema. Tinha ido ver “Era Uma Vez em... Hollywood”, de Quentin Tarantino. Aquele massacre horrível na casa de Sharon Tate, que, prestes a ter um filho, estava entre os cadáveres, não havia acontecido. Filme de Tarantino tem que mostrar sangue: houve uma carnificina, mas só morreram os do mal. Bem feito para eles.

Sensação semelhante tive com a série “Hollywood”, da Netflix. Em 1948, o combate contra os preconceitos raciais e antigay triunfou. Que bom se o passado tivesse sido assim. Porque, nos dois casos, tudo é ficção, história corrigida para o lado bom da força.

Fiquei pensando se não estamos vivendo uma tendência mais geral, investida por uma desesperada vontade de corrigir o passado.

Tento compreender o mundo de agora, mas entre as minhas muitas e grandes limitações está a da idade. Sou velho numa época que evolui muito rápido. Portanto, avanço com cuidado no que tenho a dizer: nossos tempos são suscetíveis.

Parece-me que a destruição dos monumentos públicos que ocorre hoje em dia faz parte desse desejo de alterar o passado.

Eu ficaria muito feliz se todos dissessem: “Vamos combinar que daqui para a frente não haverá mais estátuas celebrando feitos ou heróis”. Porque celebrar feitos e heróis é a pior maneira de fazer história. Ela fica assim unívoca, simplificada, para não dizer simplória. E nenhum feito ou herói é sentido como positivo por todos. Pela boa razão de que cada um de nós é sempre o canalha de alguém.

Mas estátuas assim existem há milênios e é muito provável que continuem a existir até o fim dos tempos. Possuem uma presença poderosa, animada por forças afirmativas que se querem eternas. Encarnam convicções, de modo material e expressivo. São simbólicas e impositivas.

Por isso também concentram ódios. Desde sempre que os vitoriosos destroem estátuas dos vencidos, internos ou externos. No antigo Egito, faraós em desgraça tinham suas imagens desmanteladas ou ocultadas para que ninguém as visse. Na União Soviética, o filme “Outubro” (1928), de Eisenstein, evidenciou a gigantesca força opressora do monumento ao czar Alexandre III, para mostrá-lo depois despedaçado pelos revolucionários. Sequência impressionante, abre o filme apresentando-se como “a primeira vitória do proletariado no caminho para o socialismo”.

Não faz tanto tempo, em 2003, a enorme estátua de Saddam Hussein, em Bagdá, conheceu um destino semelhante, transmitido em imagens que pareciam repetir o filme de Eisenstein.

Portanto, as estátuas são poderosas e podem inspirar afetos e ojerizas. Eu detestaria ter na esquina da minha casa —ou simplesmente saber que existe— uma estátua de Bolsonaro ou Hitler e faria parte de todas as campanhas para eliminá-las. É muito compreensível que pessoas se sintam feridas pela presença de algumas delas e que desejem sua liquidação.

Mas os impulsos demolidores, justificáveis em efervescências coletivas, não deveriam, penso, fazer parte de um programa que se prolongue.

Se eliminarmos todas as estátuas que julgamos ofensivas, reformaremos o passado. Esqueceremos que a história é a história das violências dos homens sobre os homens, violências que algumas dessas estátuas celebraram. Que nosso passado coletivo não é uma ficção hollywoodiana.

O que fazer então, com essas estátuas? Não creio que possa haver solução única. Dois escultores, Antonio Carlos Fortis e Waldo Bravo tiveram uma boa ideia: pôr jaula e correntes à volta do Borba Gato em Santo Amaro (estátua da qual, contra a maioria absoluta de opinião, eu gosto: seu excelente escultor, Julio Guerra, não era um imbecil e soube transformar o projeto heroico num bonecão ou fantoche, criando um antimonumento. Mas eles, os monumentos, não são afeitos à complexidade).

Belas ideias poderiam surgir para o Monumento às Bandeiras, mais amado pelo prestígio modernista de seu autor, que não destoaria, porém, na Itália de Mussolini ou no Portugal de Salazar; como para o Duque de Caxias da praça Princesa Isabel, despropósito de um heroísmo que pousa sobre um pedestal absurdamente alto; para o Cabral, de Morrone, no Ibirapuera, de um misticismo histérico.

As estátuas de pequeno porte são facilmente levadas para os museus, que não são cemitérios, mas nos quais o passado retoma vida para mostrar seus horrores e tentar fazer com que eles não se repitam. É importante que as gerações futuras saibam e sintam como a história foi violenta. Protegê-las disso é expô-las à repetição do mal.

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